“Odete não era maluca! Ficou assim depois que perdeu o filho assassinado...” Quem me conta isso é Maria de Nazaré, ou simplesmente a Irmã do Perfume, “mas Irmã do Perfume morena, por que tem outra irmã que vende Avon aqui no terminal, e essa é branca.”
Odete é a mulher que vi pelas ruas de Redenção andando a esmo, gritando seu desespero a pleno pulmão para todos. Na vinda à rodoviária a vi mais uma vez, o choro copioso em pleno sol e poeira da cidade, os olhos vermelhos. E sua dor virou riso descontrolado quando percebeu que eu a observava da janela do táxi, a mudança de humor que assusta por ser medida exata da loucura. A reencontrei então já no terminal rodoviário: esperava o ônibus que me levaria a Marabá quando ela entrou precedida por gritos desconexos, início de peregrinação sem objetivo, o caminhar de um lado ao outro segurando um saco plástico cheio de flores! E os gritos começaram a ter algum sentido:
Sento novamente, a Irmã do Perfume ao meu lado olhando cheia de piedade a mulher que um dia dividiu consigo o mesmo banco de igreja. “E a senhora, Dona Nazaré? Me fale da senhora!” A Irmã do Perfume mora em Redenção desde 1983 vinda de Brejinho, Maranhão, a família toda deixada para trás, família nova feita no Pará. Vende seus Avons há 15 anos e, com a venda, se mantém e criou as duas filhas, uma delas agora na Espanha, estudante. O marido recentemente se acidentou, a perna quebrada após ter sido colhido por carro, o arriscado pedalar no trânsito maluco de Redenção. E como ele trabalhava na roça, pedacinho de terra que eles têm, cabe a ela agora fazer todo o dinheiro, a missão redobrada nas ruas com a sacola pesada, cheia de Avon, que caleja o ombro: “Ele está de cama e eu tenho que segurar as pontas, né?”
“Malditos sejam! Vão pagar caro por tudo!”
Com Odete parcamente registrada, peço uma foto à Irmã do Perfume: “Prefiro não! Nunca fico bonita em retrato!” Diante da insistência ela cede, faz pose e ri: “O senhor vai colocar isso na internet, é? Acredita que eu nunca entrei na internet?” e ela me pergunta como faz para mostrar à filha distante: “Assim ela pode ver minha foto!” Escrevo o endereço do Domisteco em pedacinho de papel e compro um Avon, desodorante novo para meu kit de viagens, o meu que está quase no fim! E não deixo de pensar em Odete, a mulher que ainda grita pelo terminal e pela cidade, a dor por ter perdido o único filho, a morte que endoideceu a mãe: “Não se preocupe com ela... Logo mais ela some, vai deitar no túmulo do filho e arrumar as flores que colheu para ele! Fica lá, conversando com o menino e depois desaparece... se aquieta em algum canto!”
Fotos: Fernando Gurjão Sampaio
Odete é a mulher que vi pelas ruas de Redenção andando a esmo, gritando seu desespero a pleno pulmão para todos. Na vinda à rodoviária a vi mais uma vez, o choro copioso em pleno sol e poeira da cidade, os olhos vermelhos. E sua dor virou riso descontrolado quando percebeu que eu a observava da janela do táxi, a mudança de humor que assusta por ser medida exata da loucura. A reencontrei então já no terminal rodoviário: esperava o ônibus que me levaria a Marabá quando ela entrou precedida por gritos desconexos, início de peregrinação sem objetivo, o caminhar de um lado ao outro segurando um saco plástico cheio de flores! E os gritos começaram a ter algum sentido:
“Não vai ter mais passagem até dia 28 de dezembro! Vão embora... Acabou...”
Foi nesta hora, na aparição da mulher que gritava, que a Irmã do Perfume também surgiu e me ofereceu Avon. Ela viu que tirava fotos da mulher, discreto, e resolveu sentar ao meu lado para contar o que sabia: “Ela já foi minha vizinha, assistia ao culto comigo. Depois o filho virou bandido, único filho. Morreu novo, baleado, não tinha nem 20 anos... Desde então a Odete vive como louca, largada... Só tinha ele no mundo!” Odete passa novamente e levanto para mais fotos, infelizmente todas desfocadas pelo malabarismo da discrição, a máquina aninhada entre os braços de forma errada.“... acham o quê? Isso é tudo culpa da política...”
Sento novamente, a Irmã do Perfume ao meu lado olhando cheia de piedade a mulher que um dia dividiu consigo o mesmo banco de igreja. “E a senhora, Dona Nazaré? Me fale da senhora!” A Irmã do Perfume mora em Redenção desde 1983 vinda de Brejinho, Maranhão, a família toda deixada para trás, família nova feita no Pará. Vende seus Avons há 15 anos e, com a venda, se mantém e criou as duas filhas, uma delas agora na Espanha, estudante. O marido recentemente se acidentou, a perna quebrada após ter sido colhido por carro, o arriscado pedalar no trânsito maluco de Redenção. E como ele trabalhava na roça, pedacinho de terra que eles têm, cabe a ela agora fazer todo o dinheiro, a missão redobrada nas ruas com a sacola pesada, cheia de Avon, que caleja o ombro: “Ele está de cama e eu tenho que segurar as pontas, né?”
“Malditos sejam! Vão pagar caro por tudo!”
Com Odete parcamente registrada, peço uma foto à Irmã do Perfume: “Prefiro não! Nunca fico bonita em retrato!” Diante da insistência ela cede, faz pose e ri: “O senhor vai colocar isso na internet, é? Acredita que eu nunca entrei na internet?” e ela me pergunta como faz para mostrar à filha distante: “Assim ela pode ver minha foto!” Escrevo o endereço do Domisteco em pedacinho de papel e compro um Avon, desodorante novo para meu kit de viagens, o meu que está quase no fim! E não deixo de pensar em Odete, a mulher que ainda grita pelo terminal e pela cidade, a dor por ter perdido o único filho, a morte que endoideceu a mãe: “Não se preocupe com ela... Logo mais ela some, vai deitar no túmulo do filho e arrumar as flores que colheu para ele! Fica lá, conversando com o menino e depois desaparece... se aquieta em algum canto!”
Fotos: Fernando Gurjão Sampaio
7 comentários:
Arrancou-me lágrimas este texto agora. Pensei em como deve ser absurda a dor de perder um filho. Nós, como pais que somos, sentimos uma engasgo só de imaginar. Pobre Odete!
Lindamente triste a história de Odete,a mãe que a dor fez louca.
Tomara que a Irmã do Perfume explique direito para a filha da Espanha como chegar a teu blog kkk, muito legal se lermos aqui algum comment dela no futuro..
Parabéns pelo texto, cabra... os das viagens continuam sendo os melhores.
W
Olha... Assumo a dificuldade em conter lágrimas quando a Irmã me contou sobre as tardes passadas sob o túmulo. Imaginei a mulher, transtornada, conversando com o filho, com a pedra do túmulo, contar da vida ou tentando entender a perda. Vim a viagem inteira pensando nos meus, no que aconteceria comigo se os perdesse!
Realmente, pobre Odete!
Pobre Odete!... Loucura que lhe foi dada pela criminalidade em que vivemos... Pobre Odete!
é , meu caro, a odete... para mim, ela ganhou mais colorido, pois conversmos sobre ela lá no bené e vim com ela de lá na cabeça e a "vejo" aqui nas tuas escrituras. sempre penso e fico intrigado com os loucos. sempre penso nas mães e pais (mais nas mães) que perdem seus filhos. eu não saberia conviver com uma dor dessas. nem uetivesse que sair td dia para vender avon pra sustentar a família.
hj, ainda a pouco, persenciei da janela uns caras pegarem um ladrão de bolsa e quase matarem o cara de tanta porrada.
um dia vamos tds descansar, como odete, no túmulo de um ente querido... ou no nosso. eita violência danada!
abç
marton
Não tenho filhos e não consigo imaginar a dor de perder um. Mas teu texto deu uma boa noção pois imaginar a Odete deitada no tumulo o filho é muito triste. Adorei o texto
Perder um filho deve ser a pior dor existente...enlouquecedora, com certeza! Não tenho filhos meus, mas considero alguns como e não consigo imaginar perdê-los.
Pobre Odete que perdeu o seu!
Lindo texto!
Postar um comentário