domingo, 29 de setembro de 2013

Marcelo, muito prazer.


Desde que voltei a morar neste prédio antigo, fiz amizade com uma velha senhora que sempre encontrei pelo elevador. Primeiro, me chamou atenção sua permanente alegria e bem tratar a todos. Depois, as antigas blusas do Clube do Remo, que vez ou outra ela usava, todas datadas da década de 70 e 80, originais e muito bem conservadas. Entre idas e vindas, nos apresentamos. Ela se apaixonou por Letícia e descobri que não morava aqui, mas sim sua mãe, uma mais velhinha ainda, muito doente, a quem vinha visitar e cuidar todos os dias.

Certa vez nos encontramos no elevador e ela, sempre muito sorridente e educada, me cumprimentou com um “Bom dia, Marcelo.

Bom dia Senhora Dalva , mas meu nome não é Marcelo, é Fernando.

Oh, meu filho, me desculpe... Minha memória anda ruim, ruim, coisas da idade.

Travamos um breve papo, sem maiores constrangimentos, até que chegamos em nossos respectivos andares. Dias depois, novamente nos encontramos na portaria. Ela me deu um forte abraço e um beijo, pegou carinhosamente no meu rosto e perguntou “Marcelo, onde está a princesa Letícia?

Princesa Letícia está lá em cima com a mãe, mas lembre, meu nome não é Marcelo, é Fernando” falei novamente entre risos, para deixar claro que, apesar da troca, não havia gravidade no fato.

Meu filho, me desculpe, mil perdões. Eu sempre troco seu nome. Fernando. Fernando.

Novamente, até os respectivos andares, seguimos em alegre papo.

Faz um mês a encontrei na portaria. Agitada e alegre, veio ao meu encontro dizendo “Marcelo! Marcelo! Meu filho, comprei um presente lindo para a princesa Letícia. Vocês vão adorar. Posso ir mais tarde entregar?

Claro que pode. Quando a senhora quiser, peça ao porteiro para interfonar e suba, vai ser um prazer lhe receber

Já constrangido, preferi não corrigir. Somente avisei ao porteiro, que presenciou tudo: “Quando a Senhora Dalva quiser ir lá em casa, na casa do Marcelo, lembre a ela que me chamo Fernando, não Marcelo, e diga para subir.

Mais tarde ela foi fazer a entrega. Assim que abri a porta, dei de cara com aquele rosto marcado pelo tempo e olhos felizes, muito felizes, e ela logo me deu um abraço e disse: “Marcelo, espero que você e sua esposa gostem do presente.” Novamente, não corrigi.

Foi uma pequena festa a atenção dela com nossa filha, o presente simples, dado com carinho e atenção. Muito bom recebê-la.

Nos últimos dias, diferente de sempre, percebi a Senhora Dalva triste, muito triste...

De relance, em um encontrão no elevador, ela me disse que sua mãe andava doente, que estava internada em estado grave no hospital, que não podia visitá-la sempre, poucos minutos por dia, e que isso vinha fazendo mal às duas. Acho que ela quase começou a chorar, os olhos vermelhos que revelam logo a dor, e, felizmente, chegamos rápido em nossos andares, ou também choraria ali diante de tanta tristeza e medo. Durante muitos dias, sempre que nos encontrávamos no elevador, era sobre a velha mãe que conversávamos, sobre como ela iria melhorar e sair logo do hospital, voltar para casa e ver mais um círio ao lado de toda a família.

As semanas passaram e hoje, depois de algum tempo, voltei a encontrar a Senhora Dalva no elevador. Vinha ela e seus dois filhos, mais sua irmã e o sobrinho. Ela fez festa quando me encontrou. Explicou a eles que eu era o Marcelo, um bom amigo do prédio, alguém com quem podia contar e com quem conversava sobre as mazelas da mãe. Contou que eu tinha uma filha linda, a princesa Letícia, e que ela havia dado um presente para a princesa Letícia, e que ela havia ficado muito feliz por ter presenteado a filha do amigo dela. Disse ainda que eu havia dado força durante a internação da mãe, que agora estava boa e curada, de volta para casa, pronta para o Círio, conforme havia dito. Falava isso enquanto me abraçava carinhosamente, a velha Senhora Dalva, fazendo festa enquanto seus familiares sorriam felizes e me cumprimentavam.

Quando chegamos ao andar em que desceriam, já saindo do elevador seu filho se virou, deu um grande sorriso, apertou minha mão e falou, “Obrigado pela força, amigo... Nem sei como agradecer. Como é mesmo seu nome?

Marcelo, muito prazer.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Duas escovas de dente e um supositório

Tio Flávio era um homem baixinho, altura que sempre foi acompanhada pelo tom da sua voz. Chamá-lo de tio era uma liberdade e tanto diante da nossa relação distante: ele era tio da minha madrasta, que me recuso a descrever como madrasta, pois é minha mãe tanto quanto minha mãe o é.
Tio Flávio eu via pouco, quase somente nas festas de família, e sempre era eu quem lhe dava carona de volta para casa, pois ele dizia que eu dirigia com calma, e ele era um homem calmo, então combinavam, meu dirigir e seu temperamento.
Outra característica de tio Flávio era a forma suave de enfrentar problemas, tudo representado nas diversas histórias que nos faziam gargalhar.
Tio Flávio tinha uma grande casa em Mosqueiro, beira da praia, casa daquelas antigas cheia de quartos e salas, e, justamente por isso, sempre cheia de filhos e amigos de filhos, e primos e amigos de primos, e, algumas vezes, até pessoas que ele nem sabia quem eram, todos recebidos sempre com muito carinho. Em uma dessas vezes, segundo nos contava, pelos seus cálculos estavam hospedadas mais de 40 pessoas entre redes, camas e colchonetes. Acontece que a casa só tinha um grande banheiro de uso comum, imaginem a bagunça que era aquilo, e então, lá pelo meio do dia, alguém reparou que tio Flávio andava pelos longos corredores de camisa social sem mangas e bermuda, com sua escova de dente pendurada no bolso da camisa tal qual fosse uma caneta.
Questionado, a resposta foi simples e certeira:
meu filho, com tanta gente em casa, será que todos trouxeram escova de dente? E eu vou bem deixar a minha escova lá? Melhor ela aqui, pois assim sei que ninguém a usou.”

Isso me fez lembrar de história contada por uma amiga de minha mãe, professora universitária, pessoa muito boa, muito boa mesmo, que certa vez, nos idos de 1970, recebeu em sua casa um senhor vindo de interior muito remoto, meio aparentado, para que fizesse um breve tratamento de saúde em Belém.
A amiga de minha mãe mostrou-lhe o quarto de hóspedes e o banheiro único da casa, deu-lhe uma chave para que tivesse liberdade para exames e consultas, e assim voltou para sua intensa vida acadêmica. Depois da chegada do homem, quando acordava de manhã percebia sua escova de dente úmida, como se tivesse acabado de ser usada, coisa que se repetia depois do almoço e depois do jantar... Até que, em um belo dia, flagrou seu aparentado escovando os dentes com sua escova e então entendeu tudo:
Seu Fulano, essa escova é minha. O senhor tem que usar a sua escova!
Ah, é tem uma escova para cada um? Achava que era que nem vassoura, uma para a casa toda...

E este mesmo senhor, depois de uma consulta médica, recebeu receita pela qual teria de usar supositórios. Ele trouxe a receita para a amiga de minha mãe. que o acompanhou até a farmácia e, juntos, compraram o medicamento. Por achar que ele sabia o que fazer com aquilo, e para evitar o constrangimento que sempre envolve o uso dos supositório, a amiga de minha mãe ficou calada, já tendo feito sua parte.
Dias depois, ao perceber que o homem não melhorava do problema de saúde, muito ao contrário, piorava, a amiga de minha mãe perguntou:
Senhor Fulano, está usando direitinho o remédio que o médico passou, o supositório?
Dona Fulana, eu bem que tentei, mas aquela pílula é muito grande, quase morro engasgado com aquilo. Depois da segunda, desisti.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Sobre adoção

Olhem que coisa bacana foi decidida hoje no STJ: é possível adoção póstuma, mesmo que o processo de adoção não tenha se iniciado em vida. No caso que foi analisado e decidido hoje, a relação foi constituída desde que o adotado tinha somente seis meses de vida. Portanto, devem-se admitir, para comprovação da inequívoca vontade do adotante em adotar, as mesmas regras que comprovam a filiação socioafetiva: o tratamento do adotado como se filho fosse e o conhecimento público dessa condição”, afirmou a relatora, ministra Nancy Andrighi,no que foi seguida pela maioria da Terceira Turma do STJ. A ministra ressaltou que o pedido judicial de adoção, antes do óbito, apenas selaria, com a certeza, qualquer debate que porventura pudesse existir com relação à vontade do adotante.
Em todas as situações sociais, de festas de família, encontros entre amigos e consultas médicas, o adotante informava que a criança era seu filho, o que deixou bem claro aos juízes sua vontade incontestável de adotá-lo, o que, por fim, foi obtido após seu óbito. O processo corre em sigilo judicial por envolver menor, por isso não sei informar o número.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A secura da vida

O motorista da van me parece muito triste.
Apesar de ser educado com todos, ajudando no que pode, é clara sua secura diante de qualquer alegria que lhe pareça pelo caminho. Vai calado a maior parte do tempo, olhos atentos na estrada árida que continua a se revelar após cada curva, alerta aos braços estendidos quase que pedindo socorro, pedindo carona, sob o sol inclemente do norte do Tocantins.
As mãos calejadas de quem vive na estrada.
Partimos da Araguaína, TO, com destino a Conceição do Araguaia, sul do Pará, em viagem prevista para durar cerca de 4 horas, duração incerta diante de tanta precariedade que existe por ali.
Messias (nome fictício), aos poucos vai me revelando história tão sem cor quanto o cinza constante da estrada que nos faz companhia sem fim. Nasceu no sudeste do Brasil e casou cedo, um casamento em que havia amor e sempre vontade de estar perto. Tiveram três filhos e viviam felizes em uma pequena cidade, até que o filho mais velho teimou montar em cavalo. O pai deixou, e, obra cruel do destino, houve logo uma queda que lhe quebrou o pescoço. Como reflexo, sua morte prematura ainda acabou com o casamento dos pais, a mulher que agora culpava o marido pela perda sempre lamentada. Depois de alguma tentativa e muita rejeição, aceitou o que pedia a esposa e foi-se embora para canto qualquer que fosse distante, e nisso deixou para trás o amor que teve um dia e duas filhas que numa mais viu.
Foi tentar a sorte em Palmas, capital do Tocantins, trabalho árduo de sempre estar com pressa e correndo de um lado para o outro. Messias era o apoio de motoristas de micro-ônibus e vans, todos de pequenas cooperativas, que, não podendo ser onipresentes, dependiam dele e de seus carros para distribuir os passageiros pelos grotões mais distantes da cidade. Com um celta e uma Kombi, mais ajuda de um motorista contratado, apanhava as pessoas na entrada da cidade e as levava para o aeroporto ou rodoviária, ou qualquer outro local que fugisse à comodidade dos vanzeiros já cansados.
Estrada que não tem fim.
Em Palmas, Messias casou de novo. Teve mais duas filhas e seguia firme na tentativa de sobreviver ao final do mês, mas não tinha horário nem desculpas, sempre pronto aos chamados de apoio aos quais não podia recusar.
Seguia nessa vida até que se cansou de tudo, mais o casamento que acabou, a tristeza da perda do filho que o perseguia e uma briga com seu motorista, e por tudo isso decidiu vender o que tinha e rumar mais ao norte, o boato de que havia necessidade de transporte entre Araguaína e Conceição do Araguaia, rota boa, cheia de gente esperando na secura da estrada de sol quente de sempre.
Conseguiu uma van de segunda mão, carro ainda bom e que cabia no seu bolso. Em Araguaína, se juntou a uma cooperativa na qual tinha amigos e começou a dividir rotas e horários. Por lá foi tudo tranqüilo, os serviços do grupo que o favoreciam com guichê, funcionários e resolução de burocracia.

Em Conceição foi diferente.
Começa que e a cooperativa só tinha autorização para fazer rotas estaduais, atravessar o rio Araguaia em direção ao Pará não podia. Em tese, ele só poderia ir até Couto Magalhães, última cidade tocantinese antes da fronteira. Ocorre que o grosso do povo estava em Conceição, então havia duas opções: atravessar na ilegalidade ou morrer de fome.
Conceição foi só dureza.
A vida da família regulada pela vinda da van.
Sozinho, sem ajuda da cooperativa do Tocantins, teve que procurar, alugar e reformar um local que é, em tudo, tudo para aquele homem: garagem para a van, oficina, venda de passagens, despacho de mercadoria e casa, mas casa, neste contexto, é algo bem diferente do que conhecemos. Casa, para Messias, é varrer o chão para tirar o grosso da poeira do salão onde muitos andam durante o dia, apagar as luzes e dormir em um colchonete fino que acaba com suas costas.
Pior do que isso, foram os concorrentes, eles também ilegais no Tocantins, eis que só podiam rodar dentro do Pará, mas de olho na rota de Messias, que começaram lançando boatos terríveis de que era ruim motorista, de que já havia mesmo sofrido acidente com vítimas fatais. Ao perceberem que a necessidade de ir era maior do que o medo incutido, e que os passageiros continuavam a seguir com aquele homem, começaram a atazaná-lo com multas e fiscalizações constantes que tiravam, dia após dia, o pouco do lucro que surgia.
A poeira toma conta de muita coisa, de quase tudo, ao redor da estrada,
mesmo com tanta água bem ao lado.
Para isso a solução foi simples, uma conversa franca com o fiscal resolveu o assunto: “Eles te pagam? Se sim, deixa eu te pagar também e me deixas em paz. Recebe deles e recebe de mim, mas me deixa em paz.” Então, o fiscal ganha de lá, e diz que atazana, mas também ganha daqui, e acabou virando tranqüilidade na vida de Messias.
Após alguns anos na rota Conceição-Araguaína-Conceição, ele diz que finalmente tem paz, se é que pode se chamar de paz a secura de sua vida. Aos 57 anos, diz que tem medo de jogar futebol no final de semana, ou mesmo fazer alguma coisa mais arriscada, pois, para ele, ficar doente por cinco dias significa cinco dias sem ganhar dinheiro. Certa vez, no futebol, quase torceu uma perna e então percebeu a gravidade que era se divertir. Teve medo e hoje prefere qualquer coisa onde não possa se machucar.
Leva vida bem regrada, sem qualquer mudança de rotina. Acorda todos os dias às 06:00 para verificar o carro e encher o tanque. Depois, das 07:00 em diante, até a hora da saída de Conceição, ficar arrumando malas e caixas e acomodando os passageiros.
Chega em Araguaína, 232 km depois, por volta de meio dia, se não houver sobressaltos. Almoça rápido, sempre pouca coisa, e novamente verifica o carro já se preparando para o retorno ao Pará, marcada para 16:00.
Chega novamente em Conceição já com a noite caída, perto de 20:00, e, até desembarcar todos os passageiros, diz que chega no ponto às 21:00, hora justa para arrumar o que tiver de pendência, tomar banho e sair para comer um churrasquinho na rua, tudo bem rapidinho, pois tem que estar dormindo antes das 22:00.
Mesmo quando a estrada é boa tudo treme em buraco
ou remendo que seja.
Apesar de não ser bonito, castigado pela poeira da estrada e pelo tempo, Messias diz que toda a noite tem uma mulher “enchendo o saco” na porta do ponto querendo diversão, todas achando que ele tem muito dinheiro, o homem que tem um ponto de van e um carro que dá grana fácil todos os dias.
O dinheiro... Bem, esse vai quase todo para as filhas do primeiro casamento, a quem insiste em enviar mesada mesmo que estejam casadas e já tenham lhe dado cinco netos, mais as filhas que moram em Palmas e que ainda precisam de tudo para estudar e viver e crescer.
O que resta, diz ele, é tanta miudeza, tão pouca coisa, ainda mais diante das muitas contas inesperadas que surgem a cada dia, uma simples peça quebrada que pode significar o lucro de uma semana toda e um final de mês no vermelho.
Messias diz que nunca sofreu assalto nas estradas do Tocantins, mas já sentiu que não devia parar para determinado passageiro, ele que conhece cada boca de entrada de fazenda ou sítio, e chama muitos dos que pedem carona pelo nome, sabendo mesmo quem são, o que fazem ou o motivo da viagem.

Olhar perdido na beleza do Araguaía
Certa vez, diz que foi Deus, pressentiu que um homem desconhecido estava armado, e, quando fitou melhor a figura, pode ver a arma em volume feito por sobre a blusa. Há o medo, mas também a sorte de não rodar no Pará, onde motorista amigo seu já morreu torturado por bandido, onde vans e ônibus são parados a bala quase toda a semana.
Perto do fim da viagem, pergunto se não teme fiscalização dos órgãos competentes, ao que ri e me explica como acontece: “o pessoal estadual vem de vez em quando, mas é galho fraco. Perigo mesmo é o povo da agência federal, porque a multa é grande. Quando é assim, logo avisam e a gente entoca o carro onde der, larga passageiro onde der e fica ali escondido pelo tempo que for.
E a família? Quando o senhor a vê?
As meninas do sudeste, nunca. Lembra do menino perdido e fica triste, prefere ficar aqui onde consegue esquecer. Já as meninas de Palmas, vez ou outra consegue vê-las quando vai à capital resolver alguma pendência do carro, tudo sempre rápido, só de passagem, pois a ex-mulher tem a vida dela e ele não gosta de atrapalhar.
A estrada é democrática. Velho ou novo, a vida de todos passa por ali.
No dia dessa viagem sou o único passageiro de um trajeto que certamente dará prejuízo. Somente o tanque cheio do dia sai por uns 150 reais - e minha passagem nem chega a 50. Ao longo do caminho vão surgindo mais pessoas, trajetos diferentes, menores em sua grande maioria, mas dinheiro pouco que faz toda a diferença para aquele homem. Explica-me que, se no final dia conseguir 200 reais, certamente pode considerar esse dia como ganho. Paga o tanque de combustível, paga seu jantar, paga algumas das despesas fixas e ainda sobram uns trocados para a reserva que tenta sempre ter em mãos.
Nem sempre isso acontece, isso que nem é tanta coisa: muitas vezes pega a estrada sozinho, sem nenhum passageiro na van, e ainda acontece de pegar pouca gente no asfalto. Quando é assim, mesmo na certeza do prejuízo, tem que sair: “Primeiro, esse povo conta comigo. Faz anos que saio sempre nestes horários, então tem gente que regula toda sua vida pela minha passagem. Segundo, tem muito urubu querendo a minha rota. Se eles passam antes, quem sempre me espera fica lá, firme, faça chuva ou faça sol, sabendo que eu vou chegar. Mas, se eu falhar um dia que seja, deixam de confiar e acabam pegando a outra van. Aí eu perco tudo.
O Araguáia
Ali tudo é incerteza, nada costuma ser igual ao dia que passou. A única coisa que nunca muda são as curvas da estrada, sempre as mesmas, já quase decoradas na cabeça daquele homem.
Dias próximos de feriados, final de ano e suas festas, meses de julho e agosto, são os meses de trabalhar como um robô e fazer o dinheiro que der, época de investir no carro e pagar o que estiver atrasado. Segundo me conta, nestes dias os passageiros fazem fila nos terminais e pontos de estrada, uma pressão tão grande por partir que, não raro, acaba em briga apartada pela polícia.
Nos outros meses, quase a maioria do ano, segue a seca de venda de passagens e a queima do que se guardou nos meses de bonança. Nesse vai e vem, me conta, não sabe se terá dinheiro para trocar aquele carro que, visivelmente, está se acabando entre o pó da rota diária. E se fosse somente essa a incerteza...
Tanta secura onde há tanta fartura de tudo.

Messias resume bem o povo que vive ali, pequenas tristezas que se perdem na vista e somem diante da beleza indescritível do Araguaía, securas de vida que fazem surgir pessoas duras e forjadas no trabalho, a necessidade de viver e sobreviver, ainda mais diante de tanto esquecimento e descasos de quem é oficial.
Olhares perdidos na balsa entre Xambioá e São Geraldo resumem tudo: mesmo diante de tanta beleza, a testa não deixa de demonstrar preocupação e a dureza da vida que os ronda.

domingo, 22 de setembro de 2013

Outra do Besta

Voltando de viagem, cansado e fora de casa fazia cinco dias, já chegava na Praça da República por volta das 12:30 quando pego um senhor engarrafamento na Tiradentes, tudo parado por conta do sinal. 

Eu e o taxista já sem assunto, aquele clima sem graça no ar, quando nossa fila anda um pouco mais e avançamos. 

Nessa história de avançar, vejo que passamos por um carro idêntico ao da minha mãe, inclusive, com minha mãe dentro. Como ela também é minha vizinha, além de mãe, nada assustador encontrá-la na rua que vai para casa.

Comento tal fato com o taxista:

- Olha, é minha mãe aqui ao lado! Ela nem deve saber que voltei de viagem.

O taxista responde com um sorriso feliz diante da coincidência, o que faz surgir um personagem até então escondido no carro: o Besta.

O Besta diz:

- Já sei, vamos fazer uma surpresa para minha mãe. Estamos uns três carros adiante, então vá atrasando o trânsito até emparelharmos...

E o taxista, gente boa, boa-fé, começou a atravancar o fluxo de propósito para ficar bem ao lado do carro da mãezinha do Besta, feliz por promover um encontro familiar tão inesperado.

Carros buzinando, todos com pressa para chegar onde deviam, e aquele homem lerdando no meio da pista, sorriso bobo no rosto, pronto para fazer uma boa ação.

Com somente um carro de diferença, o Besta diz:

- Acho que já dá para ela me ver.

Enquanto escutava buzinas e mais reclamações, o Besta abre a janela e coloca os braços para fora dando tchau, com seu sorriso mais bobo-besta-emocionado pelo encontro materno.

- Mãe!!! MÃE!!! MÃAAAAE...

Nem lhe deu bola a mãe, então volta para dentro cabisbaixo e o taxista o consola:

- Calma, Dr., ela ainda está longe. Deixa chegar mais perto e o senhor tenta novamente.

Menos de meio carro de diferença, novamente o corpo para fora chamando atenção da saudosa mãezinha, mas nada ainda. Grita mais alto e nada. Faz mais adeus com os braços e nada.

Então, a fila do lado anda e o carro da mãe fica bem ao lado do Besta, janela com janela.

Taxista e passageiro se olham com cumplicidade. Agora sim, ela vai ver.

Corpo quase todo para fora, mãos a quase tocar no vidro do carro ao lado e taxista buzinando em ritmo de comemoração de final da Copa.

Na calçada, duas senhoras param para ver a cena. No carro da mãe, nenhum sinal de terem percebido o Besta, então, num último esforço, ele se estica e faz um toc toc na janela da motorista.

Felicidade. FELICIDADE.
A mãe o percebe e começa a abrir o vidro.

Alegria realizada, finalmente, a não ser por um pequeno detalhe: não era a mãe.

Era alguém muito parecida com a mãe, num carro igual ao da mãe e na rua onde a mãe mora, mas não era a mãe.

O que restava fazer com a assustada mulher que lhe encarava de forma inquisidora naquele engarrafamento?

- Desculpa senhora... Achei que fosse minha mãe.

Visivelmente braba, o Besta ainda pôde escutar um "tá doido..." enquanto a mulher, agora ex-sua mãe, fechava o vidro na sua cara.

De volta ao taxi, clima de total constrangimento somente quebrado pelo seguinte diálogo:

- O senhor está fora de casa faz tempo?

- Estou fora faz uns cinco dias, mas vejo minha mãe sempre...

- E daz tempo que não vê sua mãe?

- Desculpa, amigo, mas ela era tão parecida que realmente confundi. Incrível. Desculpe.

- O problema, Dr., é que o senhor não deve ser nada parecido com o filho daquela senhora. Só isso.

Sábio taxista.