segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A secura da vida

O motorista da van me parece muito triste.
Apesar de ser educado com todos, ajudando no que pode, é clara sua secura diante de qualquer alegria que lhe pareça pelo caminho. Vai calado a maior parte do tempo, olhos atentos na estrada árida que continua a se revelar após cada curva, alerta aos braços estendidos quase que pedindo socorro, pedindo carona, sob o sol inclemente do norte do Tocantins.
As mãos calejadas de quem vive na estrada.
Partimos da Araguaína, TO, com destino a Conceição do Araguaia, sul do Pará, em viagem prevista para durar cerca de 4 horas, duração incerta diante de tanta precariedade que existe por ali.
Messias (nome fictício), aos poucos vai me revelando história tão sem cor quanto o cinza constante da estrada que nos faz companhia sem fim. Nasceu no sudeste do Brasil e casou cedo, um casamento em que havia amor e sempre vontade de estar perto. Tiveram três filhos e viviam felizes em uma pequena cidade, até que o filho mais velho teimou montar em cavalo. O pai deixou, e, obra cruel do destino, houve logo uma queda que lhe quebrou o pescoço. Como reflexo, sua morte prematura ainda acabou com o casamento dos pais, a mulher que agora culpava o marido pela perda sempre lamentada. Depois de alguma tentativa e muita rejeição, aceitou o que pedia a esposa e foi-se embora para canto qualquer que fosse distante, e nisso deixou para trás o amor que teve um dia e duas filhas que numa mais viu.
Foi tentar a sorte em Palmas, capital do Tocantins, trabalho árduo de sempre estar com pressa e correndo de um lado para o outro. Messias era o apoio de motoristas de micro-ônibus e vans, todos de pequenas cooperativas, que, não podendo ser onipresentes, dependiam dele e de seus carros para distribuir os passageiros pelos grotões mais distantes da cidade. Com um celta e uma Kombi, mais ajuda de um motorista contratado, apanhava as pessoas na entrada da cidade e as levava para o aeroporto ou rodoviária, ou qualquer outro local que fugisse à comodidade dos vanzeiros já cansados.
Estrada que não tem fim.
Em Palmas, Messias casou de novo. Teve mais duas filhas e seguia firme na tentativa de sobreviver ao final do mês, mas não tinha horário nem desculpas, sempre pronto aos chamados de apoio aos quais não podia recusar.
Seguia nessa vida até que se cansou de tudo, mais o casamento que acabou, a tristeza da perda do filho que o perseguia e uma briga com seu motorista, e por tudo isso decidiu vender o que tinha e rumar mais ao norte, o boato de que havia necessidade de transporte entre Araguaína e Conceição do Araguaia, rota boa, cheia de gente esperando na secura da estrada de sol quente de sempre.
Conseguiu uma van de segunda mão, carro ainda bom e que cabia no seu bolso. Em Araguaína, se juntou a uma cooperativa na qual tinha amigos e começou a dividir rotas e horários. Por lá foi tudo tranqüilo, os serviços do grupo que o favoreciam com guichê, funcionários e resolução de burocracia.

Em Conceição foi diferente.
Começa que e a cooperativa só tinha autorização para fazer rotas estaduais, atravessar o rio Araguaia em direção ao Pará não podia. Em tese, ele só poderia ir até Couto Magalhães, última cidade tocantinese antes da fronteira. Ocorre que o grosso do povo estava em Conceição, então havia duas opções: atravessar na ilegalidade ou morrer de fome.
Conceição foi só dureza.
A vida da família regulada pela vinda da van.
Sozinho, sem ajuda da cooperativa do Tocantins, teve que procurar, alugar e reformar um local que é, em tudo, tudo para aquele homem: garagem para a van, oficina, venda de passagens, despacho de mercadoria e casa, mas casa, neste contexto, é algo bem diferente do que conhecemos. Casa, para Messias, é varrer o chão para tirar o grosso da poeira do salão onde muitos andam durante o dia, apagar as luzes e dormir em um colchonete fino que acaba com suas costas.
Pior do que isso, foram os concorrentes, eles também ilegais no Tocantins, eis que só podiam rodar dentro do Pará, mas de olho na rota de Messias, que começaram lançando boatos terríveis de que era ruim motorista, de que já havia mesmo sofrido acidente com vítimas fatais. Ao perceberem que a necessidade de ir era maior do que o medo incutido, e que os passageiros continuavam a seguir com aquele homem, começaram a atazaná-lo com multas e fiscalizações constantes que tiravam, dia após dia, o pouco do lucro que surgia.
A poeira toma conta de muita coisa, de quase tudo, ao redor da estrada,
mesmo com tanta água bem ao lado.
Para isso a solução foi simples, uma conversa franca com o fiscal resolveu o assunto: “Eles te pagam? Se sim, deixa eu te pagar também e me deixas em paz. Recebe deles e recebe de mim, mas me deixa em paz.” Então, o fiscal ganha de lá, e diz que atazana, mas também ganha daqui, e acabou virando tranqüilidade na vida de Messias.
Após alguns anos na rota Conceição-Araguaína-Conceição, ele diz que finalmente tem paz, se é que pode se chamar de paz a secura de sua vida. Aos 57 anos, diz que tem medo de jogar futebol no final de semana, ou mesmo fazer alguma coisa mais arriscada, pois, para ele, ficar doente por cinco dias significa cinco dias sem ganhar dinheiro. Certa vez, no futebol, quase torceu uma perna e então percebeu a gravidade que era se divertir. Teve medo e hoje prefere qualquer coisa onde não possa se machucar.
Leva vida bem regrada, sem qualquer mudança de rotina. Acorda todos os dias às 06:00 para verificar o carro e encher o tanque. Depois, das 07:00 em diante, até a hora da saída de Conceição, ficar arrumando malas e caixas e acomodando os passageiros.
Chega em Araguaína, 232 km depois, por volta de meio dia, se não houver sobressaltos. Almoça rápido, sempre pouca coisa, e novamente verifica o carro já se preparando para o retorno ao Pará, marcada para 16:00.
Chega novamente em Conceição já com a noite caída, perto de 20:00, e, até desembarcar todos os passageiros, diz que chega no ponto às 21:00, hora justa para arrumar o que tiver de pendência, tomar banho e sair para comer um churrasquinho na rua, tudo bem rapidinho, pois tem que estar dormindo antes das 22:00.
Mesmo quando a estrada é boa tudo treme em buraco
ou remendo que seja.
Apesar de não ser bonito, castigado pela poeira da estrada e pelo tempo, Messias diz que toda a noite tem uma mulher “enchendo o saco” na porta do ponto querendo diversão, todas achando que ele tem muito dinheiro, o homem que tem um ponto de van e um carro que dá grana fácil todos os dias.
O dinheiro... Bem, esse vai quase todo para as filhas do primeiro casamento, a quem insiste em enviar mesada mesmo que estejam casadas e já tenham lhe dado cinco netos, mais as filhas que moram em Palmas e que ainda precisam de tudo para estudar e viver e crescer.
O que resta, diz ele, é tanta miudeza, tão pouca coisa, ainda mais diante das muitas contas inesperadas que surgem a cada dia, uma simples peça quebrada que pode significar o lucro de uma semana toda e um final de mês no vermelho.
Messias diz que nunca sofreu assalto nas estradas do Tocantins, mas já sentiu que não devia parar para determinado passageiro, ele que conhece cada boca de entrada de fazenda ou sítio, e chama muitos dos que pedem carona pelo nome, sabendo mesmo quem são, o que fazem ou o motivo da viagem.

Olhar perdido na beleza do Araguaía
Certa vez, diz que foi Deus, pressentiu que um homem desconhecido estava armado, e, quando fitou melhor a figura, pode ver a arma em volume feito por sobre a blusa. Há o medo, mas também a sorte de não rodar no Pará, onde motorista amigo seu já morreu torturado por bandido, onde vans e ônibus são parados a bala quase toda a semana.
Perto do fim da viagem, pergunto se não teme fiscalização dos órgãos competentes, ao que ri e me explica como acontece: “o pessoal estadual vem de vez em quando, mas é galho fraco. Perigo mesmo é o povo da agência federal, porque a multa é grande. Quando é assim, logo avisam e a gente entoca o carro onde der, larga passageiro onde der e fica ali escondido pelo tempo que for.
E a família? Quando o senhor a vê?
As meninas do sudeste, nunca. Lembra do menino perdido e fica triste, prefere ficar aqui onde consegue esquecer. Já as meninas de Palmas, vez ou outra consegue vê-las quando vai à capital resolver alguma pendência do carro, tudo sempre rápido, só de passagem, pois a ex-mulher tem a vida dela e ele não gosta de atrapalhar.
A estrada é democrática. Velho ou novo, a vida de todos passa por ali.
No dia dessa viagem sou o único passageiro de um trajeto que certamente dará prejuízo. Somente o tanque cheio do dia sai por uns 150 reais - e minha passagem nem chega a 50. Ao longo do caminho vão surgindo mais pessoas, trajetos diferentes, menores em sua grande maioria, mas dinheiro pouco que faz toda a diferença para aquele homem. Explica-me que, se no final dia conseguir 200 reais, certamente pode considerar esse dia como ganho. Paga o tanque de combustível, paga seu jantar, paga algumas das despesas fixas e ainda sobram uns trocados para a reserva que tenta sempre ter em mãos.
Nem sempre isso acontece, isso que nem é tanta coisa: muitas vezes pega a estrada sozinho, sem nenhum passageiro na van, e ainda acontece de pegar pouca gente no asfalto. Quando é assim, mesmo na certeza do prejuízo, tem que sair: “Primeiro, esse povo conta comigo. Faz anos que saio sempre nestes horários, então tem gente que regula toda sua vida pela minha passagem. Segundo, tem muito urubu querendo a minha rota. Se eles passam antes, quem sempre me espera fica lá, firme, faça chuva ou faça sol, sabendo que eu vou chegar. Mas, se eu falhar um dia que seja, deixam de confiar e acabam pegando a outra van. Aí eu perco tudo.
O Araguáia
Ali tudo é incerteza, nada costuma ser igual ao dia que passou. A única coisa que nunca muda são as curvas da estrada, sempre as mesmas, já quase decoradas na cabeça daquele homem.
Dias próximos de feriados, final de ano e suas festas, meses de julho e agosto, são os meses de trabalhar como um robô e fazer o dinheiro que der, época de investir no carro e pagar o que estiver atrasado. Segundo me conta, nestes dias os passageiros fazem fila nos terminais e pontos de estrada, uma pressão tão grande por partir que, não raro, acaba em briga apartada pela polícia.
Nos outros meses, quase a maioria do ano, segue a seca de venda de passagens e a queima do que se guardou nos meses de bonança. Nesse vai e vem, me conta, não sabe se terá dinheiro para trocar aquele carro que, visivelmente, está se acabando entre o pó da rota diária. E se fosse somente essa a incerteza...
Tanta secura onde há tanta fartura de tudo.

Messias resume bem o povo que vive ali, pequenas tristezas que se perdem na vista e somem diante da beleza indescritível do Araguaía, securas de vida que fazem surgir pessoas duras e forjadas no trabalho, a necessidade de viver e sobreviver, ainda mais diante de tanto esquecimento e descasos de quem é oficial.
Olhares perdidos na balsa entre Xambioá e São Geraldo resumem tudo: mesmo diante de tanta beleza, a testa não deixa de demonstrar preocupação e a dureza da vida que os ronda.

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