sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Como explicar?

Chega a amiga de São Paulo e informa o desejo enorme de voltar ao Marajó. Se der, quem sabe?, até alongar a ida e visitar a casa onde nasceu Dalcídio Jurandir em Cachoeira do Arari. A primeira pergunta feita é: "como andam os assaltos aqui na região, aquelas histórias horríveis sobre piratas?" Quisera eu poder responder que tudo anda calmo, que nada mais acorre que justifique qualquer preocupação, mas tive que ser sincero. Disse que vez ou outra ainda ocorrem assaltos, vez ou outra ainda surgem histórias de crimes cometidos por Piratas, os Ratos d'água, e completei pedindo que eles viajassem pela parte da manhã e que tudo correria bem.
Infelizmente é isso que corre por aí, as notícias do Pará e de Belém que sempre falam de problemas, mortes e total descrença numa terra em que possamos viver em paz.
E bem... A amiga viajou, curtiu o Marajó e viu que a casa de Dalcídio foi derrubada... Na volta, hoje, foi ela quem me deu a notícia de mais um assalto nos rios do Pará - destaque regional na página pricipal do G1. Nas palavras do encarregado da balsa, “eles foram só assaltar. Eles acabaram, soltaram a gente e foram embora. Saíram como se nada tivesse acontecido. Infelizmente é comum as embarcações serem assaltadas na região. Já fomos assaltados outras vezes”. Smples assim... E seguimos nos acostumando com essa vida, com essas notícias e crimes. Ser vítima neste Estado é normal, já fomos assaltados outras vezes. Felizmente a amiga ama o Pará mais do que ama sua terra, ou então eu ficaria gago de vergonha tentando explicar que isso por aqui é normal, e que não fosse embora levando uma ideia ruim do Estado, a gagueira típica dos que ficam sem explicação para dar diante dos absurdos da vida nessa terra.

Morrer acontece com o que é breve e passa sem deixar vestígios

Acho que as lembranças que teremos, todos, serão mais ou menos iguais: a voz delicada que invadia todos os cantos com as canções que somente ela sabia cantar, o tec tec da máquina de costura que fazia adormecer nos finais de tarde e os cheiros, os muitos cheiros de chá de canela, café com leite, doce de cupuaçu, bolo branco e tantos outros. Até pouco tempo ela perambulava pelo quintal da Mundurucus plantando e cuidando, a mão que se fazia preta da terra e logo estava banhada e cheirando a colônia ou talco, ela sempre tão cheirosa e vaidosa.
Ela era valente, nenhum medo que fosse de meu conhecimento. Do que contam, sei que enfrentou bandido e visagens, que afugentou bicho e homem criado – e ela deixou sua valentia bem clara quando decidiu que enfrentaria o hospital pelo tempo que pudesse (e foram longos cinco meses entre quartos e UTI, sempre surpreendendo médicos e enfermeiras com melhoras miraculosas e reações inesperadas).
Certa vez, ainda pequenos, estávamos no quintal eu e meu irmão, mais meus primos Álvaro e Artur, tentando carregar uns pesos que um primo mais velho havia feito com latas de leite e cimento, mas todo o esforço era em vão. Quatro meninos lutando com todas as forças para carregar um peso que devia ter uns bons 20 quilos. Para nossa surpresa, vovó apareceu do nada gritando que iríamos ficar “rendidos” carregando aquele mundarel de cimento, e, com uma mão, com uma única mão, agarrou o haltere e o jogou longe fazendo-o sumir por entre as plantas do quintal. Deveríamos ter corrido da bronca que seguiria, mas ficamos tão surpresos e assustados com aquela força hercúlea, a frágil avó que não somente era mais forte do que os quatro netos – mais era MUITO mais forte – que acabamos cedendo ao ralho enquanto nos olhávamos boquiabertos.
Também lembro que, ainda criança, achava extremamente intrigante ela fazer roupas tendo como molde uns recortes que vinham em revistas de costura – era um emaranhado de linhas contínuas, linhas pontilhadas, linhas tracejadas, algo que me lembrava dum mapa de guerra, as informações secretas do avanço de uma hipotética tropa inimiga, mas que para ela eram vestidos e camisas que logo estariam cobrindo algum de nos.
Virou lenda a vez em que mamãe, tendo que viajar, pediu que ela me ajudasse em matemática. Após um dia de longo estudo, fomos dormir cedo depois de jantar e assistir tevê. Dormíamos em redes com mosqueteiro, um ao lado do outro, e eu, com poucos nove ou dez anos, tive medo de ir ao banheiro sozinho, a casa da Mundurucus que era um mundo de corredores, quartos e sombras. Resolvi acordar vovó para que me acompanhasse e juro, por tudo que é sagrado e a quem estiver lendo, que da hora em que ela acordou e durante todo meu xixi e até voltar para a rede, fui sabatinado de forma impiedosa com toda a tabuada do dia anterior. Eram 3 horas da manhã e tirei uma nota maravilhosa na prova.
Mas ela também era toda doçura. Uma vez em Salinas, depois de três dias que lá estávamos, ela me disse que queria voltar para casa, que suas plantas precisavam de cuidados e ela precisava colocar comida para os passarinhos. Voltamos e ainda fiquei com ela pelo resto do dia, deitado na sua cama entre breves cochilos, até que ela me acordou para avisar que já tinha chegado o pão quente – e foi fazer meu café com leite do final de tarde de sempre.
Acho que a grandiosidade está em tudo que se faz durante a vida.
Acho que grandioso é aquele que pensa em todos os seus atos sempre buscando fazer o melhor, não somente para si, mas para todos. E Vovó foi mãe de muitos, a casa da Mundurucus que estava sempre cheia de gente, de pessoas que, ainda hoje, encontro e me contam como aquele local serviu de porto confortável e seguro sempre que precisaram; vovó se dedicou a todos e em poucas vezes pensou nela, eram sempre os outros, os dela.
Quando meu avô Álvaro morreu em 1964, ainda nem completados 50 anos, minha avó se viu mais responsável ainda pela criação de seus oito filhos. Entre lutas e dificuldades, criou a todos e fez com que todos estudassem e fossem pessoas boas – e hoje não consigo ver um tio meu, ou um primo meu, cometendo uma iniquidade ou ato desumano que seja, sempre o ensinamento de que devemos fazer o bem e pensar em nossos atos e em nossas responsabilidades. Não é gabolice e nem estou contando vantagem – é simplesmente o que ela era e o que nos deixou.
Além disso, além de tudo que somos, ficou da vovó o cuidado que tio Amilcar tinha com os irmãos, ficou o cabelo do tio Amado, o sorriso da tia Bela e a sabedoria da tia Alvarina; a inteligência do tio Dinho, o carinho da tia Alba e aventurisse e olhar da tia Ana. Em minha mãe percebo vovó quando ela canta as mesmas músicas que sua mãe cantava, a mesma voz suave e afinada que ainda me canta canções bonitas. Em cada rosto vejo um pouquinho dela, assim como em cada atitude consigo ver coisas que ela foi mostrando nesses 96 anos de vida plena.
E isso tudo significa que ela não morreu, que ela ficou conosco e estará entre os seus pelo tempo que estivermos aqui – nas marcas físicas que temos, nos gostos que compartilhamos e nas características que demonstramos, nas atitudes que tomamos e nas certezas que permaneceram – e acho que, no final, é exatamente isso que significa família – não algo que surge do nada ou se cria, mas sim o que ela nos ensinou a ser pelo amor e pelo cuidado de sempre.
Como disse Drummond, morrer acontece com o que é breve e passa sem deixar vestígios. E se é assim, fico tranquilo por saber que ela não se foi, que ela permanece e assim será em cada sorriso e olhar nos almoços de sábado, ainda na mesma Mundurucus de sempre, a casa da vovó.