quarta-feira, 30 de junho de 2010

Mulheres de Belém - Nízia Brito

Quando cheguei na casa de Nízia Chagas Brito ela estava sentada no pátio, rodeada pela família, comandando a sessão de descascamento de camarões para o vatapá. Era uma sexta-feira quente de junho e, mais tarde, aconteceria a festa de dez anos de seu filho mais novo, Jonatan, a quinta criança adotada por ela ao longo dos seus 83 anos. E como se não bastassem todas as adoções, algumas delas ocorridas da forma mais peculiar possível, Nízia ainda teve mais 12 filhos “espremidos e paridos”, a soma espantosa de 17 rebentos criados em meio a uma vida humilde e sem riquezas, a pobreza que, se nunca adentrou pela porta, fazia questão de se relevar sempre bem próxima.

Nízia nasceu na Rua Artur Bernardes, Belém, em 09 de abril de 1927. Com apenas 15 anos se casou com Pedro Brito, ele com 22 anos, isso em 16 de outubro de 1942. Segundo ela conta, a paquera se deu na passagem diária para o trabalho dele, a fábrica que ficava bem ao lado da casa da pretendente – “ele me cantou e eu cantei a música para ele, né? Aí começamos a namorar” é a descrição que ela faz hoje, 68 anos após o casamento. A união durou até a morte violenta de Pedro, em 1990, acidente de trânsito que ceifou a vida de quem passava o dia a trabalhar, a Kombi que servia para tudo e que lhe imprensou contra um muro em morte dolorida e sentida.

Depois que casou, Nízia foi morar na casa da mãe, Dona Zulmira Chagas. Foi quando começou o parimento sem fim. Vieram Normélia, Rubens, Edson, Amilcar, Cristina, Fátima, Rosangela, Nazaré, Ivone, Roberto, Nilton e Sérgio (os dois últimos morreram ainda pequenos, oito meses e sete anos, respectivamente, o penúltimo de algo que comeu, o último, afogado).

Os adotados, escolha certeira do destino, foram Aparecida, Kátia, Patrícia, Tamiris e Jonatan. E foi assim que tudo aconteceu:

O surgimento de Aparecida – Nízia foi à Santa Casa de Misericórdia visitar a madrasta, Dona Edith, e levava Amilcar pelos braços, filho pequeno ainda. Ela não recorda a data, a memória que falha, mas lembra bem que passava pela indigência do hospital quando foi chamada por uma das pacientes: “A senhora não quer uma criança?”, foi a pergunta desconcertante feita pela mulher que acabara de dar a luz, “Olhe como a menina é bonitinha... É sua filha, olhe bem”, insistia a mulher do alto de seu desespero. Nízia relutou, ela que já tinha penca de filhos e estava grávida de dois meses de Ivone. Disse não e seguiu em frente, a visita que deveria ser feita de forma breve para poder voltar e continuar com os afazeres domésticos. E quando chegou no quarto da madrasta, relatou o fato ao pai. “Deixe disso, minha filha. Vai criar filho de outro? Você já tem criança demais, nem pense nisso”, foi o conselho dado. Mas na volta, ao passar pelo mesmo lugar, lá estava a mulher chorando, desesperada, sem saber o que fazer com a criança que dormia, candidamente, ao seu lado. Nízia foi chamada novamente: “Olhe bem para ela, é sua filha. Deus me diz isso. Leve-a, por favor... Tenho mais 10 filhos em casa e não posso cuidar dessa”. Tal pedido foi o suficiente. Nízia também não tinha muito para dar, mas diante do desespero da mulher que lhe implorava, desespero capaz de obrigar à doação do fruto seu, não viu alternativa a não ser acolher a criança em seus braços. Estava suja, completamente suja com fezes e urina, e Nízia passou um pano na menina, limpeza básica que foi o suficiente para levá-la pelada para casa. Chegando lá, tratou de providenciar enxoval qualquer para a nova filha, e nisso foi ajudada pelos vizinhos: “Um trazia um vestidinho velho, o outro trazia um cueiro. Quando eu vi, a menina tinha brinco, meia, mamadeira. Tudo”. E quando Pedro chegou em casa, o marido cansado de mais um dia de trabalho desgastante, encontrou Nízia dando chá para a criança, as duas deitadas na rede. Ocorreu o breve diálogo: “Nízia, de quem é essa criança? É nossa, Pedro... É homem ou mulher? Mulher. Melhor seria se fosse homem. E nada mais foi dito.

O surgimento de Kátia – Aparecida já tinha sete anos, quase a mesma idade da irmã Ivone. Foi quando Nízia meteu na cabeça que queria mais um filho, que queria cuidar de mais uma criança, e recorreu aos bons préstimos de seu compadre Vitor Paes, médico, que sempre estava às voltas com crianças abandonadas, mulheres desesperadas ao ponto de sumirem e deixarem os filhos para a vida cuidar. Nízia então lhe procurou e falou sobre sua vontade, o médico que era amigo e achou loucura aquilo: “Comadre, a senhora já tem tanto filho e tem tão pouco. Tem certeza de que quer mais um?”. E diante de uma Nízia que parecia ter nascido para ser mãe, firme em sua vontade, o médico confidenciou: “Ontem mesmo tinha uma criança abandonada aqui. Quando fomos notar, procurar a mãe, percebemos que ela já havia sumido. Era uma criança linda e logo apareceu uma senhora e a levou. Façamos assim: logo que tiver outra criança abandonada aqui pela clínica, guardo e te aviso”. E assim ficou combinado. Nízia só fez um pedido, demanda que pode parecer preconceituosa, mas tinha um fundamento bem simples: “Desta vez quero uma criança mais clara e de cabelo liso”. O problema era Aparecida, com cabelos crespos e de pela escura, menina que destoava dos pais e dos irmãos, a adoção que ainda não tinha sido revelada para a criança que nem conseguiria entender o fato. E cada vez mais, à medida que a menina crescia, ficava mais difícil colocar a culpa na genética, nos parentes distantes nunca apresentados, a complicação em explicar aquelas características que lhe faziam única. Nízia vinha enfrentando o dilema: contar a verdade ou esconder com desculpas. E foi para não reviver tal fato que fez o pedido, a criança mais clara e de cabelo liso, simples evitamento de problemas que tanto lhe desgastavam pelo medo de magoar, o explicar a rejeição de mãe biológica, o talvez não entender que o amor da mãe adotiva suplantava tudo. E a espera não demorou: Shirley, atendente da clínica do médico Vitor Paes, ligou e deu a notícia – “Bom dia Dona Nízia? Tudo bem? Liguei para avisar que nasceu sua filha, uma menina linda que foi abandonada hoje de tarde pela mãe”. Desta vez Nízia teve tempo de fazer o enxoval, a menina que surgiu na vida de todos e que já tinha um pouco de tudo guardado em uma mala sob a cama. Era dia 19 de janeiro de 1974 e logo Nízia partiu para buscar a filha. A entrega foi simples, sem muita festa ou formalidade, um tempo distante em que abandonar um recém nascido não parecia ser grande coisa, um tempo distante em que nem se cogitava a existência de órgão qualquer a proteger a infância. E para tantas crianças abandonadas, sempre existiam mães dispostas e carinhosas, mulheres que pretendiam dividir o tanto que tivessem, exatamente como Nízia. Ela voltou com Kátia para casa e lhe preparou tudo no novo lar. E de noite, quando Pedro chegou, dia após dia de trabalho incansável, o mesmo diálogo simples aconteceu: “De quem é isso aí, Nízia? É nossa, Pedro... É homem ou mulher? Mulher. Melhor seria se fosse homem”. E nada mais foi dito.

Nízia e Kátia

O surgimento de Patrícia – Kátia tinha pouco mais de dois meses quando Nízia foi fazer nova visita à Santa Casa de Misericórdia. Ela nem recorda quem foi visitar, mas o dia ficou marcado com a chegada de mais um filho. Novamente, ao passar pela indigência do hospital, foi chamada com psius por uma das pacientes. Novamente, os pedidos desesperados: “A senhora quer essa criança? Olhe como é linda, branquinha, um doce de menina. Por favor, leve a criança, é sua filha”. E mal sabia a mãe desesperada que não precisava de muito para convencer Nízia: “Onde comem 14 comem 15. Tenho o enxoval todinho e, se me disponho a cuidar de uma, bem posso cuidar de duas. O fato é que não podia deixar aquela menina ali, abandonada à mercê de pessoa qualquer que lhe acolhesse, e certamente lhe acolheriam, pessoa que podia ser mãe ruim, sem carinho ou cuidado necessário. Nízia nem lembra se terminou a visita que pretendia fazer, mas foi assim que entrou com uma criança e saiu com duas, a Santa Casa de Misericórdia que parecia ser o lugar ideal para abandonos e largamentos. E quando chegou em casa, os vizinhos que a chamaram de louca, tratou de cuidar das filhas com todo o zelo possível. E no final do dia, quando Pedro chegou, o tempo que já passava de forma incômoda para o homem que ficava velho, o diálogo foi diferente: “O que é isso aí, Nízia? É nossa filha, Pedro... Não, Nízia! Dessa vez não vou aceitar. És maluca, por acaso? A gente não tem nem para a gente e você trazendo mais criança. Duas crianças pequenas, nem dois meses que chegaste com uma... Desta vez não vou aceitar e trata de arranjar um vizinho qualquer que a queira, pode dar. Essa criança, aqui não fica. Dito isso, Pedro entrou no banho para lavar o corpo cansado do trabalho enquanto Nízia chorava. E ao invés de partir para a rua para oferecer a criança que, para ela, já era filha, se prostrou diante de uma imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e pediu fervorosamente que acalmasse o marido, que lhe iluminasse e permitisse a menina. E ela chorou, diante da Santa, abraçada às duas filhas. Pedro saiu do banho e trocou de roupa. Jantou comida farta, deitou em sua rede e dormiu. E na manhã seguinte nada foi dito, e nunca mais se falou sobre a permanência de menina e ela ficou.

O surgimento de Tamiris – Tamiris não foi dada - foi tomada. E Tamiris não era estranha, filha de pessoa qualquer que ninguém conhecia, não era filha da indigência da Santa Casa. Tamiris é filha da segunda adotada, Kátia, filha tida com homem que batia e humilhava. Nasceu em 23 de dezembro de 1990, no ano da morte do avô Pedro, e vivia assim, submissa ao machismo e ciúme desmedido, o homem que se achava dono das mulheres e que a todos oprimia. Um dia, cansada de testemunhar tudo aquilo, a avó Nízia sentenciou: “Kátia, minha filha. Se tu queres viver esse inferno, vive. Mas não permito que minha neta viva assim. Estou levando a pequena até que resolvas a tua vida, dar para ela o que eu puder dar”. E assim foi feito. Nízia criou, educou e ajudou a neta em tudo, a mulher que tantos já havia feito e não poderia deixar de fazer novamente. Foi mãe e avó, sempre, mesmo depois da decisão de Kátia pela liberdade e pelo largamento do marido. Até hoje Nízia é mãe-avô, a neta Tamiris que, já crescida, casada até, lhe dedica tudo, cuidados e carinhos em dobro à mulher que salvou a mãe e, agora, estendia a mão à neta.

Nízia e Franciene, mãe de Jonatan

O surgimento de Jonatan – O único menino dentre os adotados por Nízia surgiu quando ela já contava 73 anos. Filho de uma empregada que há muito trabalhava na casa da família, Jonatan nasceu em 11 de junho de 2000, menino esperto que sempre foi motivo de alegrias e razão de festas juninas. Acontece que Franciene, a mãe (essa também criada por Nízia, de uma forma ou outra), nascida no Maranhão, era mulher inquieta e que resolveu não ter pouso certo, as viagens quase que mensais entre Belém e Pinheiro, MA. E para onde Franciene partia, junto ia o menino a tiracolo, a criança que nem entendia nada e ia, sempre a dor de dizer adeus. Nízia percebeu que isso prejudicava a criança, o moleque que não tinha estudo certo e que, castigado pelas horas de ônibus, não comia direito, voltava sempre magro. E novamente Nízia sentenciou: “Franciene! Se queres ser irresponsável com tua vida, seja. Mas não faça isso com o menino. A partir de hoje ele fica comigo e tu vai viver como quiseres. Quando desejares voltar e pegar ele, quando tiveres pouso certo, ele estará aqui, sempre teu. E quando quiseres vir... Bem... Sabes que minha casa é tua, tu que também és minha filha. Faz o que quiser mas o menino fica”. Ele ficou e Nízia se viu, com quase 80 anos, quando a maioria das pessoas acredita estar no fim da vida, em recomeço barulhento, o moleque que não pára quieto, esperto e alegre como são as crianças sadias e felizes. Meio que avó, meio que mãe, Nízia voltou aos livros depois das aulas, a escovação de dentes depois da comida e a alimentação adequada dos pequenos, nisso tudo ajudada por todos que a rodeiam, sejam os paridos e espremidos, sejam os surgidos – todos iguais.

O menino é louco por ela e nem pensa em sair dali, voltar com a mãe para o Maranhão. O sentimento de Jonatan é o mesmo de todos que foram cuidados e amados por ela, protegidos sempre. E o que mais se vê naquela casa é amor e dedicação. E todos os adotados já sabem como surgiram, da renegação inicial na indigência da Santa casa ao amor esforçado e sem restrição de depois, a verdade e sinceridade que também significam amar.

Nízia e Jonatan

E ela, já velha, cheia de alegria e riso, cheia de planos, tem nele, o menino já crescido do alto dos seus dez anos, filho quase neto, bisneto, sua grande companhia. É ele quem a acompanha por todos os lados – as festas do grupo de 3ª idade, fisioterapia, viagens e visita aos familiares – assim como é ele o responsável pela massagem diária nas pernas já cansadas e doloridas de Nízia, mulher que foi, por toda a vida, mãe de quem precisasse.

Nízia soterrada por Jonatan, Tamiris, Kátia e Franciene

6 comentários:

Yúdice Andrade disse...

Muito, muito emocionante. Fez-me muito bem começar o dia lendo esta postagem. Deus abençoe essa família e, particularmente, d. Nízia.
E te abençoe, também, pela sensibilidade de compartilhar conosco a história.

Anônimo disse...

Que mulher maravilhosa. Como você chegou até ela?

Anônimo disse...

ela é linda

Anônimo disse...

Parabéns. Texto lindo. É sempre bom ler coisas boas, ainda mais quando vemos transformado o mundo em que vivemos. É bom saber que ainda existem lindas histórias como essas, e o mais importante, pessoas como você pra compartilhar isso com a gente. Parabéns mesmo. Continue postando. Te acompanho por aqui :)

Anônimo disse...

Que história leve e gostosa. Que mulher espetacular D.Nilza. Muito bom , meu amigo...emocionante e engraçado ao mesmo tempo.
W

www.diariodeumamulherdespeitada.wordpress.com disse...

Lindo texto. Maravilhosa mulher.