Esse texto da jornalista francesa Pascale Robert-Diard foi publicado pela Folha de São Paulo, do original no Le Monde, em 26 de dezembro de 2009. Merece ser lido pelo intensa imagem de humanidade que passa, uma pessoa que deixa de ser mais uma por ter deixado de tratar os outros como mais uns. É grande, mas leiam. Verão que vale cada minuto perdido (a tradução é de Lana Lim).
Quartos com vidas, ao lado de uma penitenciária francesa
Pascale Robert-Diard
Foi uma assistente social de Lannemezan (Altos Pirineus) que teve a ideia. Ela conversou a respeito com a administração penitenciária, que considerou a homenagem merecida. Em 17 de novembro em Béziers (Hérault), penduraram uma fita verde com divisas roxas e uma medalha de prata na lapela da jaqueta de Nadine Cistac, dona de hotel. "Honra penitenciária", ela leu em voz alta girando a medalha entre seus dedos. Depois guardou seu grande sorriso de fumante porque não quer que vejam o quanto está orgulhosa. "Não é tanto por mim", ela diz, "é por elas".Elas são as pensionistas do hotel. Fanny a loira, Denyse a discreta, a bela Anne-Marie. Ou ainda Michèle, Maria, Henriette, Helyette. Sinais distintivos: mulher, companheira, mãe, irmã ou namorada de detentos. Uma vez por mês, às vezes duas, elas fazem a viagem a Lannemezan. Chegam de trem ou de carro na sexta-feira à noite e só precisam atravessar a rua para abrir a porta do Hôtel de la Gare.Nadine Cistac não quer saber as razões que levaram os familiares de Fanny, Anne-Marie e outras hóspedes à prisão próxima do seu hotel. "Nunca coloquei os pés na prisão. Não quero entrar nesse mundo. Estou aqui para elas, não para eles". Mas da vida delas, sabe quase tudo
Como descrever a alegria estrondosa do "bom dia!" que as recebe nesse sábado de dezembro? Ou ainda o beijo que estala em suas bochechas, o riso, a bebida servida na mesa, a cadeira que ela puxa para se sentar e ouvir as novas, a chave do quarto que ela tira do quadro e lhes dá sem que lhe peçam - sempre a mesma, a 3 para Denyse, a 9 para Michèle, a 6 para Fany, a 4 para Helyette - , a fraternidade do olhar que as protege?
Nadine Cistac nasceu ali, há 54 anos, logo acima do bar. Seu bisavô abriu o hotel em 1918, seu avô assumiu, depois seu pai e sua mãe. Quando chegou sua vez, ela só mudou o primeiro nome na fachada. Quanto ao resto, quase nada mudou. As mesmas escadas de madeira rija levam aos dois andares do hotel, o chão fatigado do corredor range sob os passos e, nos quartos, cortinas de renda barata filtram a luz que bate em tapeçarias desbotadas.
Em 1987, quando o conselho municipal de Lannemezan teve de se pronunciar sobre a construção de um centro penitenciário destinado a receber os presidiários de penas longas, o pai de Nadine Cistac foi o único a votar contra. Ela compartilhava de seus temores. "Eu pensava que toda a ralé apareceria". O Hôtel de la Gare primeiramente se encheu de operários que vieram trabalhar nas obras da prisão. Depois as primeiras mulheres de detentos chegaram. "No início, eu as cumprimentava mas mantinha distância. Depois, me dei conta de que essas mulheres eram como eu. Agora, posso lhe dizer, eu não julgo mais". E acrescenta: "Você não imagina a felicidade que é!"
Ela não quer saber das razões que levaram seus homens a Lannemezan. "Nunca coloquei os pés na prisão. Não quero entrar nesse mundo. Estou aqui para elas, não para eles". Mas da vida dessas mulheres, ela sabe quase tudo. Algumas deixam suas malas durante anos no Hôtel de la Gare. É no olho de Nadine que elas confiam quando, arrumadas, maquiadas e decotadas, deixam seus quartos para ir até a sala de encontros da prisão: "Olha. Não está estranho?" "Você está ótima! Pode ir!"
Se chove ou se os saltos estão altos demais para pegar o caminho que, ao longo da via férrea, leva à prisão, Nadine Cistac chama seu filho caçula, Rony, um rapaz tão alegre quanto sua mãe, ou um dos frequentadores sentados no bar. "Depois que terminar seu café pode levá-las de carro?", ela pergunta. Ela aguarda sobretudo a volta, quando o sorriso se apagou e a vida, de repente, pesa sobre os ombros dessas mulheres. "Vi gerações de bebês concebidos na prisão. Acompanhei gestações, esquentei mamadeiras, vi as crianças crescerem. Como você quer que eu não me apegue? As únicas que não entendo são as que vêm pelos classificados. Quando Patrice Alègre (condenado à prisão perpétua por cinco assassinatos) estava na cadeia, recebi no hotel mulheres, belas mulheres, que vinham por ele. Nesse caso desisti, confesso", ela conta.
Neste sábado, temos Fanny, "uma pequena novidade" que vem há um ano. Ela vive em Marselha, cria sozinha sua filha e coloca todas suas economias na passagem mensal de trem e na noite de 30 euros no Hôtel de la Gare. Temos Anne-Marie, também vinda de Marselha, que reserva seu quarto duas vezes por mês, sempre acompanhada de um ou dois de seus 13 filhos, para reconfortar seu irmão detento. Há Denyse, a militante, que toma regularmente o trem noturno a partir de Paris para dividir algumas horas de visita "com Georges" (Ibrahim Abdallah, condenado à prisão perpétua em 1987 por terrorismo). Ela vem sentada, pois a passagem leito é cara demais. "Mas como estou aposentada, posso descansar durante a semana", ela diz com um sorriso.
"Essas mulheres são direitas, elas progridem, elas me surpreendem", suspira Nadine Cistac. Elas devolvem o elogio. "Aqui há pessoas simples, como eu", conta Fanny. "Saímos da visita desanimadas, mas Nadine sempre diz alguma coisa engraçada". "O ambiente da prisão é nocivo, humilhante. Quando saímos de lá, precisamos de conforto. Nadine nos deixa à vontade, ela combate os 'efeitos colaterais' da visita. Na minha terceira estadia, ela já sabia o que eu tomava no café-da-manhã. É algo simples, mas nunca houve indiferença neste lugar", confirma Denyse.
Nadine Cistac certamente tem suas preferidas. Como Helyette Bess, ex-militante da Ação Direta, que durante dez anos hospedou-se mensalmente no hotel para visitar Jean-Marc Rouillan. Depois, ele foi libertado e encarcerado novamente na prisão de Muret, perto de Toulouse. Mas todos os domingos Helyette Bess telefona para dar notícias. E sobretudo há Maria, a velha mãe de um nacionalista da Córsega. "As esposas, as companheiras, bem, é a vida delas. Mas uma mãe assim, não é a mesma coisa, é a mais bela de todas!", ela exclama. Nadine Cistac foi passar alguns dias na Córsega em sua casa. "Ela fez questão de me dar seu quarto. Ao lado de sua cama ficava sua mala, aquela que ela sempre usa para vir aqui. Quando a vi daquele jeito, toda pronta, aquilo acabou comigo".
Entra um casal pela porta do bar. Alain e Henriette. Eles abraçam Nadine Cistac, vão beijar sua mãe, Giselle, que faz palavras-cruzadas na cozinha, brincam com Rony, pedem notícias do filho mais velho, que está... na polícia. Henriette, hóspede do Hôtel de la Gare durante dez anos. Alain, condenado à prisão perpétua, em liberdade condicional há alguns meses. Ele conta, "Nadine foi a primeira pessoa que quis encontrar quando saí. Eu só conhecia sua voz, pelo telefone, quando ligava para o hotel. Mas minha mulher falava dela o tempo todo. Na prisão, todos sabem quem ela é. Quando chegam os novatos, recomendamos a eles o Hôtel de la Gare porque sabemos que ali as mulheres e as famílias são bem recebidas". "Eu vinha a cada quinze dias", diz Henriette. "Quando eu avisava a Nadine que não podia subir, pois estava mal financeiramente, ela me dizia: Venha, não tem problema!" E quando fiquei doente, ela me ligou no hospital. Só aqui se vê isso".
Quando Alain foi transferido para a prisão de Muret, para preparar sua libertação, Henriette continuava a vir dormir em Lannemezan, "porque em Muret tem hotéis, mas não tem a Nadine", ela diz. Desde que Alain foi libertado, o casal volta regularmente. Ali ele encontra Jean-Marie, ex-carcereiro da prisão que se tornou um dos melhores amigos de Alain.
De um armário atrás do bar, Nadine tira sua caixa de tesouros. Cartas recobertas por escritas desajeitadas, que chegam para ela "do outro lado do muro" para lhe agradecer ou lhe desejar um feliz ano novo. "Meus armários estão cheios de presentes. Vasos da Provença, cinzeiros, potes de picles... Poderia fazer um enxoval com isso!", ela diz aos risos. Ela se lembra de um detento, libertado após trinta anos de prisão. "Ele me ligou um dia para avisar que estava saindo. Ele me disse: 'Faço questão de lhe agradecer enquanto ainda estou atrás dos muros. Depois, o telefonema não terá o mesmo valor". Deixamos o grupo, Alain, Henriette, Anne-Marie, Denyse, rindo e lembrando das noites de pizza e partidas de cartas com Nadine Cistac.
Em outro canto da sala, os frequentadores bebem uma taça de Tariquet, o único vinho branco do hotel. Há o empregado da SNCF [companhia ferroviária nacional] que Nadine Cistac apelidou de "o Azarado", pois há anos eles apostam juntos todos os domingos 2 euros nos cavalos, e nunca ganharam nada. Também há "Phiphi", que hospeda-se há cinco anos no Hôtel de la Gare para ficar mais perto de sua mãe doente. Ela morreu, e ele ficou. Seu quarto é vizinho ao de um carcereiro do presídio, que dorme duas ou três vezes por semana no hotel há 22 anos. Também há Georges, que limpa sua mesa antes de sair. O rádio solta uma canção de Hervé Vilard. "Aumente o volume, adoro essa!", diz Nadine.
E assim vai o pequeno mundo do Hôtel de la Gare. Sente-se o cheiro acre do tabaco frio nos cinzeiros cheios. Do sanduíche de patê. Do perfume forte das mulheres na escada. Do café e do vinho branco. Da madeira encerada e do carpete gasto. Da grande solidão e das manias. Sente-se o cheiro forte de humanidade.
3 comentários:
Magnifico Tanto, realmente um texto "cheio de humanidade".
Conheço algumas poucas pessoas assim como Nadine... que olham as pessoas como únicas, até as q não fazem partes de suas vidas. Uma delas é tu, cabra...
Volto em breve!
W
prefiro não comentar...
ufa!
mm
Texto lindo (já havia comentado com vc). Emocionante mesmo!
Concordo com o Wagner...você é uma dessas pessoas. Única!
Beijos.
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