terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Andorinha

Querido Tonícores,
Eu devia ter uns seis anos quando conheci minha avó Áldora. Ela, com quase 72, não tinha nenhuma obrigação de me acolher com carinhos ou cuidados. Ela poderia, e isso bastaria dentro de todas as convenções sociais, me receber com educação e distância - e ninguém poderia lhe criticar. Acontece que essa não era a natureza dela, entende? Quem nasce para cuidar e ter carinho, quem nasce com esse dom, nunca consegue se libertar e acaba fazendo disso uma prática diária...
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Meu irmão era chamado de tratorzinho. Eu, apesar de não ter um apelido tão destrutivo, não era flor de bom cheiro. Além de nós dois ainda havia Malu, Paulinho, Mariana, Mario Bola, Larissa, Geisa, Luciana e a outra Mariana... E ainda havia o Leonardo e o Daniel (esse já mais comportado, pois era o maior). E com tanta criança correndo pela velha casa da São Jerônimo, a 'três patinhos na lagoa', a fazer ranger o piso de madeira, com tantas bocas para alimentar nas tardes de final de semana, mesmo assim, ela sempre foi só carinho com os pequenos que chegaram de pára-quedas no enorme quintal onde morava a velha cadela Lua.
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Ela não era mãe nem avó de ninguém. Apesar disso, ela foi mais mãe e mais avó do que muitas que teimam em vagar pela terra. Na verdade, ela foi pura definição de amor e dedicação... Quando sua cunhada morreu, muito nova, e deixou seu irmão, Ernesto, com responsabilidade pela criação dos quatro filhos, foi ela quem aceitou dividir e também assumir todas as responsabilidades.
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Lembro principalmente do lanche dos sábados e domingos, sempre no final da tarde, no tempo em que podíamos estacionar na São Jerônimo sem problemas. A casa era um deslumbre, casa antiga cheia de enfeites e detalhes, destas que não existem mais em um mundo de caixotes e janelas pequenas.
A casa era repleta do cheiro das boas comidas, do bolinho de farinha de tapioca, do quadradinho de banana, dos bolos, do pavê da Dona Ana, dos doces, dos pães, dos salgados e do café com leite. Também havia o fio d´ovos, e disso nunca esquecerei, que somente ela sabia onde comprar e era o melhor de todos... E nunca mais comi tudo isso.
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Ela era uma portuguesa pequena, forte e destemida - como quase todas as portuguesas são. Com ela aprendemos várias brincadeiras que ainda nos farão chorar por sua mera menção, brincadeiras feitas para deixar as crianças quietas, sentadas nas cadeiras de embalo do pátio, com frases inteligentes e inesperadas, coisa antiga que nem sei de onde veio.
Galinha no choco, cachorro late?
Chocolate
(respondiam as crianças em um grito só)
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Bento Botelho Barbosa Batista, tinha um burro branco chamado brancura e um bode barbado que fazia beee, beee
(que na versão com sotaque português virava:)
Vento Votelho Varvosa Vatista tinha um vurro vranco chamado vrancura e um vode varvado que fazia veee, veee
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Também havia o Pegue esse anelzinho e não conte nada a ninguém e o Telefone sem fio, que sempre resultava nas coisas mais absurdas, choros e brigas: A lua é bonita chegava como Malu é feia. O pato pateta chegava como Tanto tem perna fina. Acho que foi numa dessas que o Mário virou Mario Bola.
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Quando a coisa se tornava impossível de ser controlada, quando o mundarel de crianças Maneschy, Faria, Correa, Bibas, Lobato, Sucasas, Gurjão Sampaio, Tupiassu e Teixeira desandava a explodir, só restava o golpe derradeiro da Panela Podre: Coloca na Panela Podre coco de cachorro, xixi de gato, bustela de boi e olho de vaca. Coloca também sujeira de pé, cera de ouvido, dente podre, suor de suvaco e carne de gambá. Coloca tudo na panela podre e tampa. E quem falar primeiro vai comer tudo – e isso era tiro e queda para obter crianças caladas por uns bons minutos.
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No enorme quintal da casa da São Jerônimo, dentre tanta correria e boladas, nós brincávamos de tudo. Lá, fomos habilidosos jogadores de vôlei e de futebol, sempre armados com chutes errados e passes tortos, tudo resultando em perigosos resgates de bola nos quintais vizinhos.
Lá brincamos de pira-se-esconde, pira-pega e pira-cola. Lá nos divertíamos nos balanços que ficavam perto do quarto de empregadas, já no limite permitido do quintal. Lá pisávamos no coco da Lua (detestávamos) e éramos picados por mucuins, maldita mordida que só parava de arder após muito banho de álcool e carinho de avó (adorávamos).
Também brincávamos de roda, e que pessoa, na minha idade, pode dizer que ainda brincou de roda quando criança? A preferida era Bom dia vossa senhoria, que sempre terminava em choro das Marianas e da Malu, alvos preferidos das bandalheiras, ou em unhadas da Larissa, que sabia se defender das nossas espertezas:
1 - Bom-dia Vossa Senhoria / manda tiro, tiro, lá
2 - O que quer Vossa Senhoria / manda tiro, tiro, lá
1 - Eu quero uma de vossas filhas / manda tiro, tiro, lá
2 - Qual é que lhe agrada / manda tiro, tiro, lá
1 - Me agrada a Mariana / Malu / Larissa / manda tiro, tiro, lá
2 - Que ofício lhe dará / manda tiro, tiro, lá
1 - O ofício de lavadeira / lixeira / mendiga / manda tiro, tiro, lá
2 - Esse ofício não me agrada / manda tiro, tiro, lá
Também tinha Boca de Forno e as missões mais engraçadas e difíceis possíveis.
Boca de forno? Forno.
Jacarandá? Dá.
Onde eu mandar? Vou.
E se não for?
Apanha um bolo.
Remando, remando (e lá vinha a missão) eu quero que me tragam um tijolo / um sapato furado / um anel de noivado...
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Depois de grandes, largamos a brincadeira de roda no quintal e passamos às rodas de bate-papo entre os primos nas cadeiras de embalo do pátio. De lá tínhamos vista privilegiada da sala de jantar e da porta da cozinha, vigilância mais do que necessária para os esfomeados e sedentos jovens que insistiam em crescer assustadoramente e já eram bem maiores do que a avó.
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O Círio era na Assembléia Paraense, debruçados na Presidente Vargas, sempre com os Gurjão Sampaio. Mas as Trasladações eram sempre com ela, a São Jerônimo que ficava bem ao lado da Nazaré e permitia uma breve caminhada para ver a Santa passar. Lá também havia Natal e foi onde aprendi a gostar de amigo invisível e do bolo especial com Vinho do Porto (preciso pedir a receita à tia Bia). Lá havia tanta ocasião especial...
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Ela sempre dizia que havia sido bonita, que não era 'peixe podre' e que os rapazes eram sinceros admiradores. Ela contava das festas maravilhosas na Sede da Assembléia Paraense, na frente da Praça da República, na época em que se podia andar na rua sem nenhuma preocupação. Ela também contava sobre suas andanças diárias, em salto altíssimo, se equilibrando nos paralelepípedos e pedras portuguesas do comércio para ir e vir do escritório da família onde trabalhou por longos anos.
E ela contava tantas outras coisas bonitas, tantas coisas legais - e no tempo em que amar significava coisa bem diferente de hoje, teve um pretendente que compôs uma valsa para ela. E teve outro que quis casar, mas não pôde (pois ele, também português, era separado e tinha filhos). E minha avó Áldora, mocinha ainda, teve um namorico com Aristeu, também mocinho, que depois se tornou meu avô, marido da minha avó Lourdes (pais do meu padrasto), e isso era motivo de ciúmes velados, cheios de educação – e quem ainda duvida da natureza oval de Belém, desde sempre.
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Na versão Legal, ela foi a tia que criou minha madrasta. Na nossa versão, muito mais legal, ela é a mãe da minha mãe. Ela era pequenina, andava com uma bengala bonita e adorava sua cadeira de embalo. Ela calçava 32 e dizia que isso era a causa de seus desequilíbrios ( - Com um pé tão pequeno, como posso ficar em pé?, perguntava entre risos). Ela sentia cócegas no pescoço e eu adorava fazê-la rir com fungadas carinhosas. Por essas outras, ela dizia que eu havia sido seu marido em outra encarnação – e essas pequenas frases de amor, esses pequenos gestos de cumplicidade, ela tinha com cada um de nós e era sua forma de fazer com que todos se sentissem únicos.
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Ontem, com 97 anos, ela morreu depois de décadas de uma saúde forte e perfeita. Ontem, após uma vida plena e feliz, após ter criado quatro filhos e uns tantos netos (e de ter visto bisnetos), o coração cansado não resistiu a parou de se equilibrar, ainda de salto altíssimo, sobre buracos da vida. Ontem, maldito ontem, a dor se fez presente, a mesma dor que, até então, se escondia na moita com rabo de fora e somente ameaçava. Agora surge uma saudade indizível, uma saudade que perturba como mosca e não nos deixa por mais que se abane, o algo incômodo que gruda firme na carne e impregna a alma.
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Hoje resta lembrar e se sentir feliz, de preferência tomando um golinho de malzbier e comendo uma coxinha de pru (ainda o sotaque lusitano que, sempre presente, matava o pobre peru). Hoje resta sentir que a união não se perde, que o elo que sempre foi tão forte não se separar por nada e impossibilita que se faça distante.
Resta também a lição do que realmente é uma família: mais do que sangue, amor; mais do que ventre, cuidado; mais do que registro, carinho. E mais do que dever ou obrigação, pura vocação.
Essa é minha avó Áldora, em um apanhado de dados e características pensado na pressa de uma manhã lenta e morna, um texto sofrido diante de tanta memória que volta e afoga, de tanta coisa boa a saudosa que, felizmente, não some.
É um texto necessário não somente para mim, a necessidade de lembrar e registrar o que me define, mas principalmente para aqueles que, como você, não tiveram a imensa sorte de tê-la conhecido.
Um beijo,
Do teu amigo,
Fernando.

10 comentários:

toni disse...

Me transportei para o cenário que descreveste com riqueza de detalhes e mais ainda, vendo de fora, de um outro tempo como um filme da tua vida em 3D, bem na minha frente. Me senti um alienígena vasculhando tua mente para conhecer tua identidade.
Te ví um TANTINHO, de pés no chão todo sujo de terra e cara de sapeca até um TANTO arrumadinho, cabelo penteado com gel, calça comprida e camisa, sentado naquela cadeira de “embalo” conversando com teus primos...

Este registro foi uma linda homenagem a uma linda mulher que TANTO marcou tua vida.

Beijão meu amigo e que Áldora siga ao encontro de seu destino. T

Anônimo disse...

Fernando, meus sinceros sentimentos!!!

A sua querida avó fica agora imortalizada nesse lindo texto que você dedicou a ela.

Um abraço,

@AcaiGrosso

Adelina Braglia disse...

Um beijo, Fernando.

ivy portella disse...

Conseguistes traduzir o significado da verdadeira avó, quem teve uma assim nunca esquece e vez ou outra vai se deparar com a saudade que dói no peito e que não passa com o tempo, até porque dizem que com o tempo passa tudo, mas saudade de avó não.
A minha se foi em 2007 e levou um bocado do meu coração, mas deixou ser quem eu sou, isso vale a pena para nós, seres sortudos!
O que vale é que os momentos não foram desperdeçados.
Ivy

Anônimo disse...

Imagine eu, Tanto. Imagine eu...
Para a Dona Áldora, eu deveria ser apenas um jovem universitário, filho da irmã do segundo marido da sobrinha dela. Que aparecia todos os sábados e/ou domingos, lá no começo dos anos 1990, justo na hora do lanche, e ainda levando uma namorada.
No entanto, nem os quarenta centímetros que separavam os nossos rostos eram qualquer impedimento para que ela já me recebesse com as duas mãos postas para cima, o que alegremente fazia o meu rosto se abaixar, ficar preso nas suas mãos, e receber os beijos carinhosos de boas vindas. Além de tudo o que você descreveu saboreávamos também os bijús e um impressionante chocolate quente no “frescor” daquelas tardes.
Mais do que isso, no entanto, o que nunca nos esqueceremos, eu e a Cynélia – na verdade, a “minha boneca de caixa”, um carinho que ela não ouvirá (ja)mais –, era do carinho, do prazer que a Dona Áldora tinha em nos ver e saber de nós e pedir visitas. E isso já bem depois da casa da São Jerônimo ter virado uma lembrança, já depois de termos mudado de Belém para Brasília, já apenas visitas rápidas à casa da Biá.
Abraços e saudades,
Fernando Alberto

Maick Costa disse...

Amigo,

Minha vó veio a falecer no início de 2010. Sua riqueza de detalhes me remeteu a minha infância quando ia visitar minha vó que ainda morava no interior do Ceará. Numa casinha humilde, eu adorava todas as comidas gostosas que ela fazia só pra mim. Nossos eternos anjos da guarda! Meus sentimentos a você, amigo. Deus ganha um reforço na sua sua proteção =]

Anônimo disse...

Belo texto, Fernando. Belo texto.

Ida Lenir disse...

Lindo, terno, emocionante texto para uma grande pequenina mulher. Quem semeia amor, colhe carinho e gratidão. Abraço carinhoso,
www.diariodeumamulherdespeitada.wordpress.com

Carlos Barretto  disse...

Texto vibrante, que traduz a exata noção da emoção que sentes neste momento. E como vizinho da frente, desta casa ainda maravilhosa, me transportei com a mesma emoção para aqueles tempos.
É meu amigo. Eu e meus irmãos, lá também brincamos, nos terrenos de Ernesto, Dulcira e Áldora. Quando ainda talvez, nem estivesses nos planos de Maria Regina, Maria Beatriz, Antonio e Paulo.
Sem palavras.

Bjs

Anônimo disse...

Texto lindo, combinando com a pessoa linda que foi tia Aldora. Sempre lembrarei dela com carinho e a verei sorrindo como so ela sabia sorrir para nós, quando crianças.
Parabéns, adorei ser remetida a infância através de suas lembranças.
Bjos
Ivelyse