segunda-feira, 29 de novembro de 2010

É preciso sonhar

Fernando
Quando li tua crônica "Na minha rua" e dizes que tua rua é daquelas antigas me fez lembrar que estou te devendo, e aos leitores que comentaram o texto do Edson Carneiro, outras crônicas sobre Belém. Então, me veio logo à lembrança o capítulo  "É preciso sonhar", do belíssimo álbum Belém do Pará, publicado em 1995 pela Alunorte, com texto de Jota Dangelo e belíssimas fotogradias de Luiz Braga. Como diz o autor do texto sobre Belém, "... no meio desta História viva, embora tão abandonada. É preciso sonhar". Em anexo mando o texto e duas imagens de Belém reproduzidas no álbum.
Beijo
Regina Maneschy

É preciso sonhar

Jota Dangelo. 
In Belém do Pará. Alunorte, 1995, p.102-103

Se for possível, deixe-me ficar aqui à sombra desta vegetação, olhos perdidos no perfil longínquo da Ilha das Onças. Não me peça para ver como a cidade cresceu. Não estou duvidando. Apenas não me apresente aos verticais de vidro rayban. Não quero ver a cidade de coberturas e terraços. Se for possível, deixe-me ficar nesta viela, diante deste casarão arruinado. Não me arraste para estas curvaturas de concreto armado. São inevitáveis, eu sei. Modernas, eu sei. Mas, se for possível, deixe-me ficar aqui no Largo da Pólvora, junto a este coreto do princípio do século, sonhando que ainda existe ali, naquela esquina, o velho Grande Hotel na sua imponência de Rei. Não me convença a vagar por aí, simplesmente, neste chuvisco vespertino e reconfortante. Se for possível, leve-me ao Bosque Rodrigues Alves, ao Museu Goeldi e deixe-me ficar ali, tresvariando, certo de que, a qualquer momento, Pedro Teixeira surgirá em armas, chapéu de penacho, botas de cano alto. Quero o silêncio e a paz desta ilha de verdes, a companhia destes troncos e caules seculares. Não me convide ao burburinho de transeuntes e à sinfonia do tráfego, posto que aí estão, presentes e necessários. 
Mas se for possível, deixe-me no Largo da Sé, ao lado da Igreja de Santo Alexandre, porque ali marquei encontro com Antonio Landi, Padre Vieira e o pintor De Angelis. E já estou atrasado. Eu sei que é preciso ver os últimos conjuntos residenciais que estão sendo erguidos em muitos pontos da cidade e nada é mais convidativo que um passeio pelo Campus da Universidade, mas é que acabou de passar por mim uma mameluca azoada e roliça, que se meteu pela travessa da Vigia com dengos e requebros de quizomba... Mas já se foi. 
É preciso percorrer sim esta avenida ampla, sob este túnel de mangueiras, mas se for possível, deixe-me demorar um pouco nesta Rocinha: estou ouvindo risos de negras angolanas e há um cheiro de fervuras no ar. Deixe-me sonhar que Bates está lá dentro entre seus livros e coleções. Não insista para que eu mergulhe na trepidação da vida noturna, com suas luzes feéricas e intermitentes, o calor humano subindo a temperatura numa demonstração de vitalidade e juventude, e ainda bem que assim seja. Sei que os tempos estão em contínua mutação, e esta agitação é pertinente. Mas é que ouvi, há pouco, pregões de vendedores no Largo do Carmo e som de tambores candomblés no Porto do Sal. O tempo é curto e ainda não fiz minhas compras na Paris N’América e há um concerto hoje à noite no Teatro da Paz, regido pelo Maestro Vicente Collas. Compreenda minha urgência: sei que há sorveterias irresistíveis, que há mocidade nas ruas e nas praças, mas tenho pouco tempo. 
Se for preciso, deixe-me aqui mesmo, pois estou vendo aproximarem-se as gôndolas sonhadas por Gaspar Gronsfeld, que imaginou ver o Piry transformado numa Veneza Tropical. Está vendo os canais que ele projetou, com cais de pedra, ladeados de árvores frondosas de mistura com plantas ornamentais?   
Não me interprete mal. Não tenho nada contra este pulsar da vida, este esplendor de luzes, este encantamento que se irradia e se projeta das gerações esperançosas em direção ao futuro. E que lá chegarão, repetindo a valentia e a trajetória de seus ancestrais. Mais é que neste momento sou muitas Beléms. Todas as Beléms. Por isso, deixe-me aqui. No meio desta História viva, embora tão abandonada. Deixe-me nesta Belém, ao pé do Forte do Castelo, vendo chegar a noite para envolver as águas mansas do Guamá, luziluzindo estrelas neste céu de chumbo. Não se preocupe. Breve virão buscar-me. Sonhei Belém. Não me é preciso mais nada. 

A imagem abaixo reproduz a página 108 do Álbum. Cidade de Belém do Grão–Pará. Acima, Prospecto do poente. Abaixo, Prospecto do norte. Desenho de João André Schwebel. Serviço de Documentação Geral da Marinha, R.J. 

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