quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Amazônia – Capital, Belém

O texto é lindo. Foi escrito em 1956 por Edison Carneiro e me foi enviado pela Regina Maneschy: "Como da última vez que mandei matéria para teu blog me queixei de Belém que, como digo, é a cidade da beleza e da cordialidade perdidas, e como encontrei o trabalho de Edison Carneiro, "A conquista da Amazônia", de 1956, editado na coleção Mauá, para o Serviço de Documentação do Ministério da Viação e Obras Públicas, resolvi te enviar o trecho em que ele fala sobre Belém, aliás, o início de um capítulo que ele intitulou significativamente, "Amazônia - capital, Belém".
Edson Carneiro esteve três vezes na Amazônia, em Belém, entre 1954 e 1955. E o relato sobre Belém, delicioso, é fruto de sua convivência com a cidade. Em seguida te mando outros relatos para publicares no blog, mostrando como era essa Belém "singular e inconfundível ... uma cidade peculiar, testemunho vivo da riqueza da Amazônia", como a qualificou Edison Carneiro.
PS. Pedindo licença ao De Campos Ribeiro vou denominar esta série de "Gostosa Belém de outrora"."

CAPÍTULO III
Amazônia – Capital, Belém.

Significativamente, a capital da Amazônia encontra-se à orla oriental da região norte.
A cidade de Belém, fundada (1616) como posto de fronteira, para a expulsão de ingleses e holandeses que exploravam feitorias no baixo Amazonas, devia servir de trampolim para a penetração e a ulterior ocupação do vasto território desconhecido que lhe ficava a oeste. Uma base para o avanço. Enquanto predominou a lavoura de mantimentos em torno de Belém, foi fácil manter a cidade como ponta de lança contra a floresta, mas a descoberta das drogas do sertão, e a sua intensa exploração a partir de meados do Século XVIII, fez da cidade uma cidade e da região amazônica a fonte imediata da sua subsistência, da sua riqueza e da sua expansão.
As comodidades urbanas foram fixando os homens. Porta de entrada da região, única até a abertura do Amazonas à navegação em 1866, a cidade multiplicou as oportunidades e as satisfações que oferecia aos seus habitantes. Não estava perto o mar? Não ficavam a pequena distância os centros tradicionais da civilização brasileira, a começar por São Luís?
A cidade não se expandiu para o oeste, na direção da floresta amazônica, antes recuou para a sua fronteira oriental, na direção do mar (o salgado paraense), num movimento que a Estrada de Ferro de Bragança viria sancionar – e consolidar.
Belém se fez a capital da Amazônia. A distribuição da população mostra que, dos 1.844.655 habitantes da Amazônia, mais de três quintos – 1.123.273 (61%) – vivem no Pará, dos quais pouco menos de quarto – 254.949 (23%) – em Belém (1950). Pouco menos de um sétimo (14%) de toda a população amazônica tem por horizonte a baía de Guajará. Uma concentração para a conquista da região norte – três séculos depois da ereção da praça d’armas do Presépio? 
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Singular e inconfundível, Belém traz a pinta da grande cidade.
Os seus habitantes não se escravizaram ao rio, como acontece em toda a Amazônia, - da Cidade Velha partiram para a conquista da Campina e criaram, na Zona Bragantina, a sua região metropolitana. Do jugo do rio resta apenas o Ver-o-Peso, o mercado público mais pitoresco do país, um formigueiro de gente e de embarcações, vendendo e comprando víveres, animais, plantas úteis e artigos da indústria rudimentar do caboclo.
Um estilo de vida especial desenvolveu-se na cidade.
As ruas com indicação do distrito e da quadra... Os bairros, Sacramenta, Pedreira, Telegrafo sem fio, Cremação, Condor, com a sua sistematização de ruas: no dos Jurunas, tribos indígenas, Tupinambás, Timbiras, Parecis, Mundurucus; no do Marco (da Légua), as vitórias brasileiras na guerra do Paraguai, Lomas Valentinas, Humaitá, Peribebuí, Chaco; no de Nazaré, figuras da república, Deodoro, Ruy Barbosa, Quintino Bocaiuva, Benjamin Constant... A Praça Batista Campos, em que a Prefeitura transformou o antigo parque; a vida “vila” da barca, pescadores e marítimos vivendo sobre a água em casas de madeira arrancada a navios encalhados; a miniatura da floresta amazônica no Bosque Rodrigues Alves... A arborização de mangueiras... Travessas, alamedas, passagens, como a da Volta da Tripa...
As coisas do governo em amarelo, as da Prefeitura em azul... O horário das 7 às 12...
Açaí, tacacá, pato no tucupi, muçuã, bife à Carlos Gomes... A bandeira vermelha à porta, anunciando o açaí... Bacaba, pupunha, cupuaçu, taperebá... As tacacázeiras, às primeiras horas da tarde, vendendo nas esquinas... Cachaça servida em cuia...
A Rua João Alfredo (“rua do comércio”), o Cavador da Vida, o Machado de Aço com um vasto machado (de madeira) do lado de fora, a loja de tecidos que anuncia a sua “sinceridade absoluta” na afirmação de que é a maior da América do Sul... Malas de raspa de couro... Cigarros Terezita... O Buraco Cheiroso vendendo essências da Amazônia...
A Viação Valha-me Deus, empresas de ônibus donas de um veículo, Circular Interna e Circular Externa, os Dirigíveis (tipo Zeppelin) adorados pelas crianças – Cidade de Belém, Guajará, Brasil, Marajó... Uma corrida de automóvel pelos olhos da cara... Os Clippers de parada de ônibus...
Pará Clube, Assembléia Paraense... Os parques de bairro apresentando pássaros, Coati, Tentém, Periquito, Rouxinal, bichos, Beija-Flor, Corrupião, Cigarra Pintada, Saí Azul, Bentevi, bois bumbá, Onze Bandeirinhas, Flor do Campo, Flor do Lomas, Pai da Malhada, Primoroso, Boi Fôrro, Estrela Brilhante... Um dançaraz em cada bairro... O rancho – uma espécie de escola de samba – Não quero me Amofiná, multi-campeão do Carnaval, sob o comando do negro Maravilha... Batuques e pajelanças, com espada (lenço mágico) e cigarros de tauari, o Marquês de Pombal como chefe da linha de tambor:
Tu não me chama de pajé
Sou o Marquês de Pombal
Cadê o barão de Goré?

O Cinema Poeira (“proibido entrar com sorvete”)...
O Museu Goeldi, impossibilitado de expor as suas inestimáveis coleções, limitando-se a manter um pequeno zoo de lontras, poraquês, macacos-prego, araras e tracajás... A Matriz, obra do arquiteto Landi, com afrescos de De Angelis; a igreja do Carmo, a fachada em pedra de liós importada de Portugal; a Basílica de Nazaré, monumento ao Mau Gosto... O Teatro da paz, saqueado nas suas estatuetas, nos seus enfeites e até no seu gerador de força pelas autoridades da república Nova... O cemitério (semi-abandonado) da Soledade... O Grande Hotel com as suas esquadrias protegidas por tela, a sua boite Buraco Frio, as suas escadas de incêndio.
As praias do Mosqueiro e do Chapéu Virado... As manhãs de domingo em Icoaraci... O igarapé das Armas com as margens enfeitadas de louça de barro... O paraíso dos namorados na cúmplice penumbra da Praça da República... Carapanãs...
Adornos pessoais de couro de jacaré e de cobra, souvenirs de guaraná e de patchuli, chapelões de palha de jupati, urupemas quadradas para decoração... Pulseiras (aromáticas) de pau d’Angola...
Uirapurus empalhados, dente de jacaré, prego de coati, olho de boto, muiraquitãs, língua de pirarucu...
A lembrança imperecível do grande prefeito de Belém, “o velho Lemos”...
Uma cidade peculiar, testemunho vivo da riqueza da Amazônia.

CARNEIRO, Edison. Capítulo III. Amazônia – Capital, Belém. In.: A conquista da Amazônia. Ministério da Viação e Obras Públicas: Coleção Mauá, 1956, p. 39-43. 

6 comentários:

Carlos Sacramenta disse...

Foi um viagem ler este texto! Detalhes magníficos de uma época tão saudosa até por quem nela não viveu! As descrições parecem tão vivas na nossa memória com suas cores e seus aromas...muito bom!

Claudia Nascimento disse...

Muito bom e importante transcrever estes trechos de referência. Repasse meus parabéns à Regina Maneschy pela ideia.
Vou lincar ao meu blog, Tanto: http://marcosdotempo.blogspot.com

André Pompeu disse...

Sempre que eu leio sobre a antiga Belém eu fico emocionado, essa cidade é a pérola da Amazônia, cada resgate da memória parece trazer uma felicidade muito grande, devíamos levar essa memória dessa cidade tão linda pra todo mundo conhecer .

Maick Costa disse...

Eu aqui em São Paulo, em meio a uma multidão, viajando por uma Belém impressionante! Excelente texto! Faço uma pergunta: porque na descrição dele tem a referencia à Basílica como de mau gosto? Fiquei intrigado. Qual o contexto da época e do autor? Acho que vale um outro post sobre isso e sobre cada detalhe descrito nesse belo texto.

Tanto disse...

Carlos, Claudia, Andre e Maick, realmente o texto é maravilhoso. Incrível o poder de descrição da cidade em tão poucas palavras. Muitas coisas ainda resistem. Outras, infelizmente, sumiram com o tempo. Não some o amor pela cidade. Claudia, repasso os parabéns à Regina.

Anônimo disse...

Obrigada pelos comentários. Realmente Belém foi uma cidade muito bonita e com personalidade, personalidade única que vinha da junção das influências portuguesa, francesa, tudo com o tempero paraense. Único lugar onde realmente a cultura indígena, africana e portuguesa se fundiram e conviveram de alguma forma até hoje. Essa Belém sobreviveu até os anos 1990. Vou mandar a vocês, por meio do blog, trechos de um álbum sobre Belém, de 1995, publicado pela Alunorte. Regina Maneschy