Tradução de Nuno Guerra e Filipe Guerra
Noite. A criadita Varka, garota de treze anos, baloiça o berço da criança e ronrona baixinho:
Oh ró-ró, ró-ró,
Ouve esta cantiga ...
Defronte do ícone arde uma lamparina verde; atravessando o quarto de uma ponta à outra está esticada uma corda com fraldas e enormes calças pretas a secar. A lamparina projecta para o tecto uma mancha grande, as fraldas e as calças lançam sombras compridas sobre o fogão, o berço, Varka
... Quando a lamparina começa a piscar, a mancha e as sombras avivam-se e mexem como que movidas por um sopro de vento. O ar está abafado. Cheira a sopa de repolho e a artigos de sapataria.
A criança chora. Há muito enrouqueceu de choro, mas ainda berra, sabe Deus quando acalmará. Varka está morta de sono. Colam-se-Ihe os olhos, pesa-lhe a cabeça, dói-lhe o pesco. Está incapaz de mexer as pálpebras e os lábios, tem a sensação de que se lhe enrijou e secou a cara, que toda a cabeça lhe diminuiu até ao tamanho de uma cabecinha de alfinete.
– Oh ró-ró – ronrona ela – vou fazer-te a papinha ...
Algures, no fogão, canta o grilo. Do quarto vizinho, avessando a porta, chega o ressonar do patrão e do seu ajudante Afanássi ... O ranger lastimoso do berço, o próprio ronronar de Varka – tudo se funde numa música nocturna embaladora, tão doce de ouvir quando a pessoa está na cama. Mas agora que dormir é proibido, esta música modorrenta só oprime e irrita; se Varka adormecer, Deus a guarde, os patrões batem-lhe.
A lamparina pisca. A mancha verde e as sombras põem-se em movimento, metem-se pelos olhos semicerrados e imóveis de Varka, formam sonhos nebulosos no seu cérebro meio adormecido. Nuvens escuras correm-lhe na cabeça perseguindo outras nuvens escuras e gritando como a criança. Sopra um vento, desaparecem as nuvens, Varka vê uma estrada larga coberta de lama viscosa, arrastam-se as carroças pela estrada, arrastam-se as pessoas com trouxas às costas, voam para trás e para a frente umas sombras; de ambos os lados, através do nevoeiro frio e mau, vêem-se uns bosques. De repente, pessoas e trouxas caem para a lama viscosa. «Para que foi isso?» – pergunta Varka. «Dormir, dormir!» – respondem-lhe. E adormecem todos como pedras, dormem docemente, enquanto as gralhas e as pegas pousadas nos fios do telégrafo tentam acordá-los gritando como a criança.
– Oh ró-ró, ouve esta cantiga ... – ronrona Varka e já se vê numa izbá escura, abafadiça.
No chão estrebucha o seu falecido pai Efim Stepánov. Varka não o vê, só o ouve a rebolar-se de dores pelo chão e a gemer. «Rebentou-lhe a hérnia», como ele costumava dizer. A dor é tão forte que é incapaz de articular palavra, só engole o ar e bate os dentes:
– Bu-bu-bu-bu ...
A mãe, Pelagueia, correra para a herdade avisar os amos de que o seu Efim se finava. Saíra havia muito, já devia ter voltado. Varka está deitada no catre do fogão, sem sono, a escutar o «bubu-bu» do pai. Já se ouve alguém a acercar-se da izbá. Os amos mandaram um médico jovem da cidade, de visita em casa deles, para ver o pai. O doutor entra na izbá; não se vê nada no escuro, mas ouve-se ele a tossir e a fazer estalar o trinco da porta.
– Acendam uma luz – diz ele.
– Bu-bu-bu ... – responde Efim.
Pelagueia corre para o fogão e põe-se a procurar o caco onde há-de haver uns fósforos. Passa-se um minuto em silêncio. O doutor remexe nos bolsos, acende um fósforo dos seus. – É para já, paizinho, é para já! – diz Pelagueia, precipita-se para fora da izbá e volta logo com um coto de vela.
As bochechas de Efim estão cor-de-rosa, os olhos brilham e o olhar tem uma acutilância especial, como se Efim penetrasse com os olhos toda a izbá e o doutor.
– Então, que ideia é a tua? – diz o doutor, inclinando-se para ele. – Irra! Há muito que tens isso?
– Isso quê? Só sei que chegou a minha hora, meu senhor. Vou morrer ...
– Deixa-te desses disparates ... Curas-te!
– Vossoria o diz, meu senhor, agradeço-lhe muito, mas eu é que sei ... Quando ela chega, não há nada a fazer.
O doutor luta durante um quarto de hora em torno de Efim; depois levanta-se e diz:
– Não posso fazer nada ... Precisas é de ir para o hospital, fazem-te lá a operação. E vais já ... Sem falta! Já é tarde, está tudo a dormir no hospital, mas eu passo-te um bilhetinho. Estás a ouvirme?
– Mas como há-de ele ir, paizinho? – diz Pelagueia. – Não temos cavalo.
– Deixa, eu vou pedir aos teus amos, dão-vos um cavalo.
O doutor sai, a vela apaga-se, outra vez se levanta o «bu-bu-bu» ... Meia hora depois alguém chega à izbá. Os amos mandavam uma carrocinha para levar Efim ao hospital. Efim veste-se e vai ...
Agora é uma manhã linda, cheia de sol. Pelagueia não está em casa: foi ao hospital ver do Efim. Chora algures uma criança, e Varka ouve alguém a cantar na sua própria voz:
– Oh ró-ró, ouve esta cantiga ....
Volta Pelagueia; persigna-se e sussurra:
– De noite meteram-lhe para dentro a quebradura, de manhã entregou a alma ao Senhor … Que descanse em paz … Diz que já era tarde para o salvar... Era preciso ir antes...
Varka vai para a mata e é lá que chora, mas de repente alguém lhe dá uma pancada tão forte na nuca que ela bate com a testa contra uma bétula. Ergue os olhos e vê à sua frente o patrão sapateiro.
– O que fazes tu, tinhosa? – diz. – A criança a chorar e tu dormes?
Puxa-lhe a orelha, dói, ela sacode a cabeça, embala o berço e ronrona a cantiga. A mancha verde e as sombras das calças e das fraldas oscilam, piscam para ela, não tardam a dominar-lhe outra vez o cérebro. Outra vez a estrada de lama viscosa. A gente de trouxa às costas e as sombras deitam-se outra vez a dormir profundamente. E Varka, olhando para elas, sente um desejo insuperável de dormir; deitava-se de bom grado, mas a mãe Pelagueia vai a seu lado e manda-a andar, depressinha. Vão as duas à cidade arranjar trabalho.
– Uma esmolinha, por amor de Cristo! – pede a mãe aos passantes. – Tenham misericórdia, meus ricos senhores! – Dá cá a criança – responde-lhe uma voz conhecida.
– Dá cá a criança! – repete a mesma voz, mas já zangada e brusca. – Tu dormes, grande traste?
Varka levanta-se de um pulo, olha à volta e percebe o que se passa: não há estrada, não há Pelagueia, nem passantes, no meio do quarto está a patroa que veio amamentar a criança. Enquanto a patroa, gorda e espadaúda, dá de mamar e tenta acalmar a criança, Varka fica-se de pé, à espera que ela acabe. Para lá da janela o ar já se torna azul, as sombras e a mancha verde no tecto já empalidecem. Aproxima-se a manhã.
– Pega! – diz a patroa abotoando a camisa no peito.
– Não pára de chorar. Deve ser mau olhado.
Varka pega na criança, põe-na no berço, recomeça a embalá-la. A mancha verde e as sombras vão desaparecendo aos poucos, já nada se mete na cabeça de Varka para lhe enevoar o cérebro. Mas continua a ter sono, um sono horrível! Varka encosta a cabeça à borda do berço e baloiça-o com o corpo todo, a ver se espanta o sono, mas os olhos colam-se, a cabeça pesa.
– Varka, acende o fogão! – ouve-se do outro lado da porta a voz do patrão.
Quer dizer, tem de se levantar, começar na lida. Varka deixa o berço e corre a buscar lenha ao alpendre. Está contente. De pé, a correr e a andar, não tem tanto sono como sentada. Traz a lenha, acende o lume, sente o rosto hirto a descontrair-se, os pensamentos mais claros.
– Varka, põe o samovar a aquecer! – grita a patroa. Varka corta os cavacos e, mal tem tempo de os acender e meter no tubo do samovar, já ouve nova ordem:
– Varka, limpa as galochas do patrão!
Senta-se no chão, limpa as galochas e pensa: que bom meter a cabeça dentro da galocha larga e funda e dormitar um pouco. Então a galocha cresce, infla-se, enche o quarto todo, Varka deixa cair a escova, mas logo sacode a cabeça, esbugalha os olhos e tenta olhar de maneira a que os objectos não cresçam nem se movam diante dos seus olhos.
– Varka, lava as escadas de fora, é uma vergonha para os fregueses!
Varka lava as escadas, arruma os quartos, depois acende o outro fogão e corre à venda. O trabalho é muito, não há um momento livre. Mas nada mais difícil do que estar encostada à mesa da cozinha, de pé, a descascar as batatas. As batatas saltitam-lhe à frente dos olhos, a cabeça pende-lhe para a mesa, a faca cai-lhe das mãos, a patroa, gorda e de mangas arregaçadas, fala tão alto ao seu lado que lhe atroa nos ouvidos. Também é uma tortura servir à mesa, lavar a roupa, costurar. Há instantes em que, aconteça o que acontecer depois, não se importa de cair redonda no chão e dormir.
O dia passa. Ao ver como escurecem as janelas, Varka aperta as têmporas empedernidas e sorri, sem saber por que sorri. A bruma nocturna acaricia os seus olhos colados e promete-lhe um sono profundo, não tarda. Mas à noite há visitas em casa.
– Varka, põe o samovar a aquecer! – grita a patroa. O samovar dos patrões é pequeno e, antes de os convidados se fartarem de beber chá, é preciso aquecê-lo cinco vezes. Depois do chá, Varka de pé durante uma hora, no mesmo lugar, olha para os convidados e aguarda as ordens.
– Varka, vai comprar três garrafas de cerveja, depressinha!
Vai, e tenta correr o mais que pode para espantar o sono. – Varka, vai buscar vodka! Varka, onde está o saca-rolhas? Varka, amanha um arenque! Por fim, os convidados saem; apagam-se as luzes, os patrões vão para a cama.
– Varka, embala o menino! – soa a última ordem.
No fogão canta o grilo; a mancha verde no tecto e as sombras das calças e das fraldas voltam a meter-se pelos olhos semicerrados de Varka, a piscar para ela, a enevoar-lhe a cabeça.
– Oh ró-ró – ronrona ela – ouve esta cantiga ...
A criança berra, desfaz-se em berros. Varka vê a estrada lamacenta, os caminhantes com as trouxas, Pelagueia, o pai Efim. Compreende tudo, reconhece toda a gente, apenas, através da modorra, nunca mais consegue identificar aquela força que lhe prende as mãos e as pernas, a oprime, a não deixa viver. Olha à volta, procura que força será aquela para poder livrar-se dela, mas não a encontra. Por fim, extenuada, mobiliza até aos seus últimos alentos, força a vista, olha para cima, para a mancha verde a piscar e, atentando nos berros, descobre o inimigo que a não deixa viver.
O inimigo é a criança.
Varka ri. Está espantada: como não compreendeu antes uma coisa tão simples? A mancha verde, as sombras e o grilo parecem rir também, e espantar-se. É dominada por uma ideia equívoca. Levanta-se do banco e, com um grande sorriso na cara, sem pestanejar, passeia pelo quarto. Sente um prazer, umas cócegas boas só de pensar que, agora mesmo, se vai livrar da criança que a prende pelas mãos e pelas pernas ... Acabar com a criança e depois dormir, dormir, dormir ...
Sempre a rir, piscando o olho para a mancha verde e ameaçando-a com o dedo, Varka aproxima-se sorrateiramente do berço e inclina-se sobre a criança. Depois de a estrangular, deita-se muito depressa no chão, ri da felicidade de poder ir dormir e, um minuto depois, dorme como morta
...
Extraído de “Contos”, edição da Biblioteca de Editores Independentes, Lisboa, 2008
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