quarta-feira, 10 de abril de 2013

O juiz


É inerente ao ser humano reclamar!
Reclamamos por tudo, nisso somos campeões, e de forma bem injusta não somos os melhores quando a questão é elogiar. Eu tenho meus alvos preferidos de reclamações: o trânsito de Belém, a grosseria humana, a pretensa perfeição dos seres e, ainda, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará.
Entendam: advogado que sou, faço audiências por todo o Estado e me deparo, vez ou outra, com situações bem desagradáveis. A audiência que demora. A audiência remarcada sem que avisem às partes. Informações desencontradas. Falta de informações. Falta de vontade. Grosserias e pouco caso de servidores.
Hoje, tentando quebrar esse círculo vicioso de somente criticar, sem nunca ver um lado bom nas coisas, farei algo diferente: vou elogiar!

Fui escalado para uma audiência designada para segunda-feira, 10 horas da manhã, na comarca de Ananindeua, 1ª Vara Cível. Imaginem os pensamentos aqui na minha cabeça: segunda-feira, logo ela, a lembrança amarga do final de semana que ficou para trás, e ainda em Ananindeua, horário relativamente cedo se considerarmos a distancia e o trânsito. Para piorar, audiência em vara cível marcada para o meio da manhã, que provavelmente não seria a primeira e, invariavelmente, começaria atrasada. Me preparei para sair de casa por volta de 7 horas da manhã, e para não estar liberado antes de 15 horas, um dia de minha vida perdido pela burocracia do Tribunal.
Fiz como planejei: sai de casa 7:20 e cheguei no fórum perto de 9 horas. Chegar cedo também era necessário, pois o fórum de Ananindeua foi completamente reformado e não gostaria de chegar na hora justa, o risco sempre presente de me perder em ruas e corredores que não conheço bem.
Para minha surpresa, no fórum moderno e bonito que se ergueu ali, havia vagas de estacionamento disponíveis para advogados! Coisa boa que já mudou meu humor. Talvez acabasse nem sendo tão ruim assim, né?, pensei.
Depois de localizar meu preposto, nos dirigimos à 1ª Vara para dar uma verificada nos documentos do processo (processo antigo, de 2006).

Começa que tudo muda quando há educação: servidores gentis e sorridentes ofereceram logo uma cadeira para sentar enquanto folheávamos os autos. Depois, para minha surpresa, fui informado de que estava chegando a hora da audiência, que eram pontuais ali. Se quisesse, poderia mesmo ir me instalando na sala de audiência e me preparar.
Fizemos assim.
Partes já instaladas, adentra na sala o juiz António Jairo de Oliveira Cordeiro, a quem, antes de conhecer como juiz, conhecia por fatos que, infelizmente, acontecem com pessoas boas: em uma noite de Agosto de 2004, Antônio Jairo foi vítima de uma assalto em Belém, no bairro do Umarizal. Covardemente baleado pelos assaltantes, ficou tetraplégico no auge da sua vida profissional, com 33 anos de idade. Com isso “foi obrigado a afastar-se do trabalho para buscar tratamento e reabilitação. Buscou a Rede Sarah, em Brasília, e lá aprendeu a movimentar-se de uma nova maneira ‘sobre rodas’, adquiriu novas capacidades e, finalmente, descobriu novos recursos tecnológicos para voltar a trabalhar e produzir” (lei mais aqui - saci.org).
Quando tentou voltar ao trabalho, mais porrada: mesmo com um laudo formulado por equipe multidisciplinar (composta por neurologistas e fisiastras) de que tinha preservadas suas funções cognitivas e intelectuais, foi aposentado por invalidez por meio de decisão administrativa do Pleno do Tribunal (13 desembargadores contra 11). O motivo? As restrições físicas de sua deficiência e os custos elevados para as adaptações necessárias.
Percebo que existe um descompasso entre o poder público e a sociedade”, disse o juiz na ocasião. “Enquanto o Estado impõe às empresas privadas cotas de contratações, reformas para acesso e penalizações quando do não cumprimento das leis, esse mesmo Estado parece não assumir tais compromissos.
O juiz pediu reconsideração da decisão e, desta vez com o apoio da Associação dos Magistrados do Pará, conseguiu convencer os desembargadores de sua plena capacidade e reverteu a aposentadoria (17 votos favoráveis ao seu retorno). “A sensação que tenho é de estar ingressando agora na magistratura. Vou começar do zero, em uma outra realidade”, disse o juiz. Realocado para a comarca de Ananindeua, declarou: “Farei o possível e o impossível para ultrapassar o número mínimo de produção, que corresponde a 20 audiências e 30 sentenças por mês. Quero disputar promoções na carreira de igual para igual com meus pares.
Foi esse juiz que encontrei naquela manhã de abril, em uma audiência que maldizia ter que fazer. No final, agradeci por ter estado ali e aprendido um pouco mais sobre a vida e como devemos encará-la.
Começa que a audiência foi conduzida com a maior serenidade e educação por uma pessoa que se revelou cuidadosa no que faz. São poucos os magistrados que aceitam instruir um processo por tanto tempo, escutando partes, inquirindo testemunhas e analisando provas como fez aquele juiz. Isso tudo com limitações de movimento e todos inconvenientes que decorrem da tetraplegia. Durante quase três horas nos deparamos com um homem educado, que realmente fazia esforço para entender o litígio e, assim, poder resolvê-lo da forma mais justa.
E mais: estávamos tratando de produto bancário, coisa cheia de cálculos, juros e termos estranhos, coisa chata mesmo, que acaba virando barreira aos que seguem o rumo do direito. Mesmo com toda a complexidade que a causa apresentava – complexidade que também me atingia, e acho que a todos, menos à gerente do Banco que me acompanhava - ele seguiu firme no afã de entender tudo, de não deixar passar nada.
Como não podia digitar, o juiz contava com uma pessoa que, usando dois monitores, lhe mostrava em tempo real o termo de audiência. Diante de erros, pacientemente explicava o que deveria ser corrigido sem nunca levantar a voz um tom que fosse.
Em determinado momento meu celular vibrou: era meu chefe, que por sms pedia que verificasse uma ação de interesse do Banco. Sem deixar sua educação de lado, o juiz me pediu que não utilizasse o telefone na sala de audiências - e aí poderia ter encerrado a reprimenda. Ele fez diferente: “Doutor, vou lhe explicar a razão do meu pedido. Tive um problema sério aqui na vara com um advogado que utilizava o celular para vazar informações da audiência. Somente por isso.” Mesmo que eu estivesse errado e ele certo, mesmo que ele pudesse me ordenar que desligasse o celular, preferiu mostrar que não se tratava de decisão descabida e sem sentido, e nisso demonstrou grandeza.
Em outro momento, quando surgiu dúvida sobre determinada situação que envolvia conhecimento jurídico, demonstrou mais uma qualidade: humildade. Se dirigindo a mim, disse de forma franca: “Doutor, eu posso estar deixando passar alguma coisa, acho que existe algo neste sentido no Direito do Trabalho. Vou pesquisar e tirar essa dúvida. Verifique também.” Entendam: juízes, em sua grande maioria, não gostam de demonstrar que desconhecem algo, evitam a todo o custo descer de seu pedestal. Comumente há a névoa do conhecimento completo que os acompanha. Encontrar um juiz que admite a possibilidade de não saber algo, ou que afirma que vai estudar e pesquisar é, no mínimo, algo novo para mim.
Isso tudo feito sem qualquer demonstração de cansaço ou chateação, sem nenhum pingo de impaciência ou grosseria. Durante essas quase três horas discutimos e conversamos francamente, assumimos ter dúvidas sobre determinados pontos, mas também rimos e conversamos amenidades. Todos ali, presos ao compromisso comum da audiência.
No final, lido o termo e sem grandes firulas, se retirou da sala com um alegre cumprimento: “Senhores, me dêem licença e tenham um bom dia”, e partiu para mais uma audiência (isso já perto de uma da tarde, a fome e sede já apertando o ventre).
Sai e ele ficou lá, sem nenhuma pausa, trabalhando para bater suas metas e disputar de igual para igual com seus pares. Sem dúvida a disputa vai ser desigual. Não para ele.

3 comentários:

Hildaremedeiros disse...

Olá, Nando!
O enredo real é belíssimo. E sai-se da leitura com renovada fé na humanidade.
O Juiz do texto é realmente uma aula de vida! Muitos de nossos pares deveriam ter a honra de conhecê-lo e, principalmente, seguir o exemplo, inclusive como profissional.
O autor do texto... bem, saudades tuas, viu? Kkkkkkkkk
Destarte, não te vejo tão diferente do "heroi" da narrativa.
Beijos, Amigo!

Yúdice Andrade disse...

Amigo, adoro as tuas mensagens inspiradoras. Já trabalhava no tribunal quando o juiz Antônio Jairo conseguiu reverter a aposentadoria e posso dizer que, naquele dia, havia um sentimento no ar de que se estava fazendo justiça a um homem de bem e profissional dedicado. Não fui o único a ficar feliz com a decisão, a respeito de pessoa que sequer conheço, e fico feliz de saber como são as coisas hoje.

TESTE KOINONYA disse...

Seus textos sempre muito bem escritos e proporcionam uma viagem para quem esta lendo, meu amigo. A História do Juiz António Jairo de Oliveira Cordeiro é uma grande lição para todos nós.