Nando, a Antónia se foi esta noite.
Sabem o que é a saúde pública
no Brasil? Um matadouro. Sangram as pessoas até não poder mais, até que não
tenham mais forças para suportar tanto sofrimento e pronto. Resolvida a questão.
É assim que resolvemos as coisas por aqui.
O sistema público de saúde do Brasil é um dos mais bonitos do mundo, ao
menos no papel (basta dar uma lida na Constituição). Na vida real, na dor real,
pessoas são tratadas como móveis, tudo arrumado de acordo com a vontade e
disposição de quem as recebe. É uma inversão de valores absurda: o sistema
deveria se adequar às necessidades, não as necessidades se adequarem ao sistema.
Todos que usam o sistema público de saúde têm que se adaptar à agenda
apertada dos médicos e seus atrasos, os prazos sempre longos de nunca ter data
disponível para o que seja!
Antónia se descobriu com câncer no seio. Como era pobre, procurou
atendimento em hospital de ponta de Belém, mas hospital público. Minha mãe
ajudou no que podia: “pelo SUS só vai ter
data para exame no mês que vem”, então minha mãe ia e pagava o exame; “não tem data para consulta com oncologista”, ou nem tem oncologista, então minha mãe ia e pagava a consulta particular com
oncologista. E assim fomos caminhando, tudo tão difícil, tudo tão complicado.
No hospital de ponta nada parecia funcionar. A triagem dos casos era feita,
olhem só, por uma assistente social, não por um médico. Assistente social
fazendo exame clínico e verificando quem deveria viver ou morrer, ainda mais
diante de míseros quatro leitos disponíveis.
Nos revoltamos com tudo que não funcionava e fomos para o ataque: pegamos
no pé do Ministério Público, que prontamente entrou com uma Ação Civil Pública
pedindo informações sobre as denúncias - e instando o judiciário a fazer o
sistema funcionar. Minha mãe, que regularmente escreve no jornal O Liberal, fez
duro artigo sobre o drama – e olhem como se faz uma mágica: artigo publicado no
domingo, seguido de telefonema do hospital de ponta na segunda-feira informando que
Antónia deveria comparecer já na terça-feira, com documentos e o que mais fosse necessário
para sua internação, pois iria ser operada na quarta-feira seguinte. Do nada tudo ficou célere, tudo virou rapidez e eficiência.
Antónia foi operada na quarta-feira, mas morreu. Já estava tão fraca, tão
cansada de tudo, das humilhações diárias nas filas do hospital, do menosprezo
de pessoa que viam seu seio inchado, enorme, e diziam que não era nada – as
mesmas pessoas que diziam haver outros em situação pior, que ela deixasse de frescura - que simplesmente não aguentou a operação.
A palavra “câncer” é oriunda do latim câncer, “caranguejo”. Uma referência à proliferação sorrateira e covarde de células cancerosas no organismo (metástase), tal qual o animal que se movimento nas profundezas da lama.
Sobre Antónia, que foi tratada como lixo, que morreu ontem no final da
noite, vou ser breve porque Antónia foi muito e não cabe neste texto.
Chegou em casa grávida, tudo escondido, pois por conta da gravidez foi chutada da
casa onde trabalhava anteriormente. Quando minha mãe e avó descobriram, ela
chorou, implorou por piedade, e que precisava de um teto para o filho que ia
nascer.
E aí surgem as ironias da vida: nós demos um simples teto, enquanto Antónia
nos deu um novo sentido de família. Fizemos o enxoval dela, e foi minha mãe quem,
num fusca verde e velho que tínhamos, acompanhou Antónia no dia que nasceu
Luciana, na Santa Casa de Misericórdia. Minha mãe e avó se revezando na beira
da cama ajudando no que fosse, enquanto eu e meu irmão esperávamos em casa, ansiosos
por receber aquela que considero uma irmã. Luciana cresceu conosco e fomos
muito felizes em brincadeiras mil – e hoje Luciana é advogada, formada e concursada,
indo contra pessoas que ousaram dizer “desiste
disso, Luciana. Filha de empregada não vira doutora”.
Antónia não gostou de
ouvir isso: trabalhou dois turnos, as vezes três turnos, tudo para pagar livros
e cursos para a filha. Muitas vezes dormia menos de três horas por noite, tudo
para oferecer o melhor para a filha – e eram só as duas. Ela nunca saiu de perto da gente, mesmo quando
minha mãe deu a ela uma casa – e meus filhos têm verdadeira adoração por ela, assim
como ela tinha por eles.
Antónia não cabe aqui, então paro aqui.
E que tenham força para lutar, e que consigam esperar, aqueles que não têm
voz e que não são enxergados pelo Ministério Público, e que ficam à mercê do
julgamento de uma assistente social para saber se terão chances ou não de
sobreviver.
O que se fez do Brasil?
O que se fez do sistema de saúde pública do Brasil que deixa que se matem
brasileiros?
Cada um deles, cada um desses invisíveis, é toda a importância do mundo
para alguém.
Antónia morreu na UTI do hospital de ponta somente por causa do artigo de domingo. Se não fosse por isso, ainda estaria esperando, acompanhando o crescimento
a olhos vistos do tumor que já nem a permitia respirar direito.
Antónia era amada e era querida, era o nosso chão.
Perdemos nosso chão.
5 comentários:
Impossível não ficar com um nó na garganta lendo o texto...
Mas que Deus abençoe a família de Antônia e a todos os amigos que a socorreram quando ela mais precisou.
Beijo no coração amigo.
W Mello
Fico assustada com tanto descaso.Hoje minha "mãezinha" esta completando 3 anos de "morta", pois foi isso que aconteceu, mataram ela em uma UTI dentro de um hospital reconhecido em nossa cidade como de "alta qualidade". Minha amada se foi, foi tirada de mim sem dó nem piedade, ela era linda e tão amada por mim.
Meu sol, minha menina, minha mãezinha, sinto saudades de ti.
Tanto, meus sentimentos.
A dor e a revolta não cabem em um texto, mas alertam para o que importa reclamar.
Fiquem com Deus. Paz à alma da Antónia.
Vc fala em hospital publico. E minha mae que foi pro o hospital particular, que se diz referencia em Belém, so se for referencia de incompetência, falta de preparo, mercenários, assassinos. Pois tudo isso fizeram na minha mae. O descaso total esta cheio de processos e ninguém faz absolutamente nada. E nos a merçe disse sistema terrível. Infelizmente, nesse pais e assim, ficou doente? Morre ou morre.
Lamento profundamente que algo assim tenha acontecido, tanto quanto não me surpreendo, o que dá ares ainda mais trágicos à coisa.
Espero que a tua mãe escreva um novo texto sobre o episódio. Imagino que seja assim, chamando a atenção, gritando, que talvez consigamos ser escutados um dia.
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