segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Mulheres de Belém - Cecília e Júlia*

Belém, 29 de julho de 2010.
*Cecília e Júlia são nomes fictícios

Era uma quinta-feira de fevereiro, três da tarde. Júlia, 13 anos, caminhava tranqüila pela Rua São João com seu dois irmãos e um colega, todos mais novos que ela (12, 10 e 08 anos, respectivamente). Iam para o colégio estadual onde estudam e que ficava bem pertinho dali, no coração do bairro do Aura, Município de Ananindeua, Zona Metropolitana de Belém.
Os irmãos de Júlia e o colega iam de bicicleta e a menina caminhava. Em um determinado momento, os meninos se distanciaram dela que, sem imaginar o que brevemente lhe aconteceria, ficou um pouco para trás.
Foi quando ele apareceu: vindo na direção contrária, também de bicicleta, cruzou com os meninos e, mais distante, chegou perto de Júlia e começou a atacá-la.
Primeiro ele a agarrou e jogou livros e cadernos no chão. Depois, enquanto chupava, lambia e mordia o pescoço da menina indefesa, as mãos que tentavam apalpar tudo, dizia que iria levá-la para o mato e que iria lhe “comer todinha”. A menina gritou e nenhum dos meninos, distantes já, escutou. Ela tentou escapar enquanto era arrastada para o matagal que ficava próximo, o homem que era bem mais forte, e sua sorte foi um dos meninos ter se virado e visto a cena nojenta.
Os pequenos, valentes, voltaram dispostos a enfrentar o violador, homenzarrão, e gritaram e disseram que iriam chamar socorro.
E o homem, covarde como são muitos dos homens, largou Júlia e disse: “hoje não te comi. Mas amanhã te pego e, com uma corda, te amarro e te como todinha”. E ele foi embora calmamente, como se nada tivesse acontecido, pedalando sua bicicleta pelas ruas do Aura.
Júlia teve forças somente para chegar ao colégio e desmaiar. Não conseguiu assistir às aulas e, sem dizer nada à professora e à diretora, voltou com seus irmão, todos pequenos, todos assustados, para casa.
Quando Cecília, a mãe, chegou do trabalho, a menina nada lhe disse por medo de apanhar. Foram os irmãos, somente no dia seguinte, que relataram o caso. Cecília estava de saída, apressada, a volta ao trabalho que se fazia urgente, e só teve tempo de baixar a gola da filha e ver as marcas dos chupões e mordidas no pescoço da menina. E como ela não poderia faltar ao serviço, pediu aos filhos que ficassem em casa e não fossem à rua por nada e para nada, o medo de que o pior pudesse acontecer na sua ausência. Depois, pegou o ônibus em direção ao Centro, a obrigação de trabalhar e manter seis bocas que, simplesmente, não lhe dava opções.
No trabalho, casa de família, Cecília não falou nada para ninguém. E de noite, quando voltou ao Aura, foi com a menina a uma delegacia buscar atendimento. Da polícia recebeu resposta seca: “Senhora, já passaram 24 horas do fato. Agora não podemos fazer mais nada”. E nem a ocorrência policial elas puderam registrar, a voz do poderoso que cala, com sua arrogância, a do humilde.
Mais tarde, em roda de conversa com os vizinhos, a menina que mora ao lado da casa de Cecília, também com 13 anos e que havia sido estuprada pouco tempo antes, pediu a Júlia uma breve descrição daquele que havia tentado lhe violentar. Terminada a listagem dos traços, a jovem vizinha se pôs a chorar e disse: “foi o mesmo me estuprou. Tenho certeza”.
Esta vizinha, segundo me contou Cecília, também não registrou ocorrência policial. Foi estuprada seguidas vezes e chegou em casa sem poder andar, carregada por um bom samaritano que a encontrou pelas ruas andando feito zumbi. E antes de sair para procurar um hospital que lhe atendesse, a jovem teve que colocar uma fralda geriátrica por conta do enorme sangramento por entre suas pernas. A menina ficou três dias internada e foi operada diversas vezes, suas partes intimas destruídas que precisaram, praticamente, ser refeitas. No final, nada aconteceu com o malfeitor, a família miserável que, já abalada, resolveu não perder tempo em delegacias e procedimentos que não dariam resultado algum – e essa é a idéia comum no bairro do Aura.
Cecília também conta que, alguns dias depois, o homem ainda passou diante de sua casa de bicicleta. Todos sabem quem é mas ninguém faz nada, o medo de represálias e o poder público que, aparentemente, relega aos moradores do Aura a regra do deixai fazer, deixar passar, o mundo caminha por ele mesmo.
O tio de Júlia, irmão de sua mãe, já pensou mesmo em fazer justiça com suas mãos mas foi desmotivado por todos: “do jeito que as coisas são aqui no Aura, bem capaz dele ser logo preso e passar a vida como criminoso. Já o outro, o que tentou estuprar minha filha, que estuprou várias outras, esse está por aí passeando de bicicleta, procurando uma nova menina para se fazer”.
E o homem continua aprontando poucas e boas.
Cecília diz que ele já violentou diversas outras mulheres, meninas e crianças, sem que nada seja feito. E a vida segue...
Depois daquela quinta-feira de fevereiro, Júlia deixou de ir ao colégio e perdeu o semestre, ficou trancada em casa e se rebelou contra a mãe. Passou a dar respostas tortas e ir contra todas as regras da família. Começou também a namorar um garoto, namoro que Cecília desaprova e que lhe preocupa – o menino teria passagem pela polícia.
E com muita conversa e paciência a mãe vem segurando a dor da filha. Final de junho a menina pediu para voltar ao colégio - quer continuar estudando. Aos poucos retorna a boa menina, responsável e risonha, sempre a cuidar dos menores durante a longa jornada da mãe.
Cecília voltou ao colégio agora no mês de julho para tentar reaver a vaga de Júlia. Só não encontrou viv’alma que pudesse lhe ajudar. Sugeriram que voltasse depois, em agosto talvez, pois certamente haveria alguém na secretaria. E ela desabafa, com rancor: “minha filha sumiu do colégio e ninguém me procurou para saber de algo, o que tinha acontecido”.
Realmente, no colégio ninguém se interessou por saber da menina estudiosa e risonha que sumiu de uma hora para a outra sem dizer nada. Também, ninguém se interessou em ajudá-las a perseguir o criminoso, a lei que parece ter pesos diferentes de acordo com o agredido.
E as marcas odiosas de chupadas e mordidas no pescoço, a sensação do visco da baba do agressor que não sai nos “banhos após banhos”, tudo está ainda lá, gravado na mente de Júlia, e de lá não sai tão facilmente.
Está lá também a sensação de desamparo de Cecília, mulher que tem como certa a desnecessidade de polícia ou boletins de ocorrência, a convicção de que nada será feito para lhe ajudar, a dura realidade do Aura que seca esperanças e crenças e transforma a vida em murcha flor cheia de espinhos.

3 comentários:

Luiza Montenegro Duarte disse...

Já disse antes que adoro as suas mulheres de Belém, mas hoje não gostei de ter lido.
Não que as mulheres citadas não mereçam admiração e que a realidade não deva ser conhecida, mas o estupro é o maior medo de uma mulher, eu acho. Só de pensar, dá vontade de morrer...

Anônimo disse...

E pensar que existem esses monstros soltos... Se pensar muito, a vontade que dá é de não sair mais de casa. Mas não está certo. Aliás, tanta coisa errada neste mundo.

Coitadas das pessoas que foram violentadas por esse animal.

Muito bom texto. Parabéns.

Anônimo disse...

Concordo com Luiza. "O estupro é o maior medo de uma mulher". Com toda certeza.