sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Não se pode brincar com tudo...

Hoje, após o linchamento público de uma menina de 16 anos – linchamento que continua a pleno vapor inclusive – liguei a televisão e me deparei com o anúncio de um filme chamado Sem Vestígios. É um filme norte-americano que conta história de comoção popular pela internet, algo tão nefasto, tão repugnante e incontrolável que me fez crer, quando o vi da primeira vez, que seria algo impossível de acontecer na vida real.

A história é assim: um assassino serial inventa engenhocas eletrônicas que matam suas vítimas aos poucos. Como a morte e tortura são transmitidos pela internet, em tempo real, cria-se um jogo macabro – quanto mais as pessoas acessarem o link que transmite a lenta morte, mais rápida e cruel esta se tornará. O que se poderia imaginar então: o número de acessos cresce de forma vertiginosa, o que resulta na morte ao vivo de várias pessoas. A polícia, o governo e as redes de tevê fazem apelos emocionados à massa acéfala na rede: “por favor, salvem a vida dessas pessoas, não acessem esses links. Acessá-los faz de você tão criminoso quanto a pessoa que captura, tortura e mata...”
Em um mundo ideal, creio eu, os acessos parariam e tudo se resolveria, mas acontece que esse mundo ideal nunca existiu: no filme, os apelos só fazem aumentar o interesse dos internautas e pessoas morrem como moscas para satisfazer ao telespectador.
Depois disso me lembrei da Amanda Todd - como não lembrar dela?- uma menina canadense de 15 anos que se matou agora em outubro de 2012. Quem quiser saber da história diretamente pela vítima pode clicar aqui e assistir ao vídeo/apelo de socorro que ela postou no YouTube pouco antes do ato derradeiro.
Em resumo, Amanda Todd cometeu um erro irreparável quando tinha 12 anos de idade, quando era uma criança: em uma sala de bate papo pela internet, seduzida por uma pessoa com quem conversava, acabou mostrando os seios para a webcam. A mostra dos seios gerou uma imagem, que gerou chantagem, que por sua vez gerou mais imagens e um bullying poucas vezes tão escancarado.
O agressor, em uma perseguição absolutamente irracional, seguia os rastros da menina onde ela estivesse. A cada nova mudança de Amanda ele conseguia seus novos dados, contatos de colegas de escola e, então, refazia a divulgação das fotos, criava comunidades e perfis falsos no Facebook para constrangê-la no que pudesse. Esta exposição criminosa gerava uma agressividade bestial nos colegas de Amanda, algo completamente sem sentido e inexplicável, totalmente contrário a qualquer princípio humano básico de solidariedade. Era de se esperar que os colegas da menina, todos da mesma idade, todos eles expostos aos mesmos perigos que ela, se solidarizassem e buscassem uma forma de lhe ajudar, mas não foi o que aconteceu...
Amanda foi humilhada e chegou mesmo a ser surrada por colegas de escola, ocasião em que teve que se esconder em uma fossa para se salvar da turba enfurecida. Ela só foi encontrada horas depois por seu pai, a menina toda suja, enlameada e degradada da civilidade. Disso tudo resultou autoflagelo, uso de drogas e bebidas, tudo que pudesse oferecer escapatória qualquer ao sofrimento que vivia. A menina mudou de colégio várias vezes, mudou mesmo de cidade e tentou suicídio pela primeira vez bebendo detergente.
Desta vez ela foi salva, o que não gerou qualquer sentimento de piedade em seus carrascos. O massacre sistemático continuava: mensagens raivosas no FB foram enviadas dizendo que ela deveria ter morrido, que deveria tentar novamente tomando produto mais forte para ver se obtinha êxito. O linchamento público chegou ao ponto de as pessoas postarem fotos de detergentes e a marcarem nas imagens, uma forma silenciosa e discreta de agredi-la, agressão psicológica muitas vezes mais dura do que a física.
"Eu ainda estou aqui não estou?" pergunta Amanda no vídeo postado no YT, como lembrete singelo de que não era um ser invisível, nem uma idéia vaga, algo que podia ser agredido da forma que desejassem. Era um ser humano, algo material e tangível que estava ali e devia ser respeitado! Logo depois a menina continua suplicando que a deixem em paz, que parem de lhe perseguir, enquanto afirma que está lutando para continuar neste mundo. “Perdi todos os meus amigos e o respeito de todas as pessoas. (...) Nunca poderei recuperar esta fotografia. Esta aí para sempre.” De tudo isso me pergunto: por que temos esta sanha assassina, essa vontade irrefreável de estarmos confortavelmente sentados na platéia de espetáculo desumano qualquer e aplaudir, aplaudir com toda a força e pedir que o show de terror continue para nosso simples deleite? De onde surge essa vontade sem controle de ferir, de denegrir, de humilhar e magoar pessoas que nem conhecemos, pessoas que nunca vimos e de quem nada sabemos?
O que vi ontem foi um linchamento público, linchamento engraçado e divertido como se fosse brincadeira de família, os tios e tias, primos e parentes reunidos na sala contando as mesmas velhas piadas de sempre. Havia um grande grupo de pessoas que humilhava, ofendia e xingava a menina sem qualquer razão evidente. E o que havia de fato? Bem, ela transou com o namorado e fez fotos íntimas; pode ou não tê-lo traído – o que teria motivado a “vingança” - e as fotos beiravam o grotesco, o que divertiu muita gente.
Fora isto não vi ninguém que tivesse sido ofendido, caluniado, agredido ou algo parecido pela menina. Não havia velha rixa ou mágoa encubada que explicasse aquilo. Até vi pessoas que diziam conhecê-la, mas somente de longe, de vista – e nem mesmo este pequeno grau de intimidade impedia a participação na chacota geral.
Não teve razão a comoção geral para acabar com a moral e com a honra de uma desconhecida, repito, uma adolescente de 16 anos que aparentemente apanhava sem nem saber a razão. A única razão era que aquilo divertia a audiência babaca no meio da madrugada, audiência esta completamente desconectada das consequências de seus atos, igualzinho ao filme que mencionei acima... As pessoas não querem ser piedosas, as pessoas querem crueldade e sofrimento alheio. Melhor se for o sofrimento de um estranho, se a pimenta não arder no meu olho. E se o massacre puder ser feito com a relativa proteção que a internet oferece, lugar comum dos covardes que, certamente, não fariam igual se fosse noutro lugar, melhor ainda!
Tenho certeza de que grande parte das pessoas que linchavam não faria igual se fosse ao vivo, na rua de sua casa e diante de seus vizinhos e parentes, suas identidades expostas e atitudes à disposição de críticas e conceitos negativos.
É na internet que todos viram valentes, ficam fortes, ainda mais se vão no ritmo da maré da comoção geral e irracional, uma verdadeira horda bestial na qual todas as bestas mutualmente se protegem.
É na internet que o filho faz o que não faria diante da mãe, diante do pai – ou até faria, quem sabe? Certas coisas, pessoas e atitudes podem ter explicações bem mais profundas do que essa que ofereço, razoavelmente rasteira.
Enquanto isso, enquanto a horda se divertia, uma vida real com endereço, telefone e fotos ia se acabando pela madrugada, a simples e inexplicável vontade de se divertir.
Espero sinceramente que a menina de 16 anos tenha força para enfrentar isso tudo – e que não enfrente só, que tenha sua família, seus amigos, sua crença e o que mais puder lhe ajudar.
Também espero que muitos do que jogaram pedras e cuspiram possam ter filhos – porque certas coisas só se aprende depois que os filhos chegam. Mas que não aprendam da pior forma, igual às terríveis humilhações que cometeram. Que aprendam por terem adquirido maturidade de entender que erraram.
Por fim, minha mãe me ensinou: ria sempre, brinque sempre e se divirta sempre! Mas entenda que há tempo para rir e tempo para calar, tempo para brincar e para encarar as coisas com seriedade, assim como há tempo para se divertir e tempo para se preocupar. Não se pode brincar com tudo...

Um comentário:

Anônimo disse...

"De onde surge essa vontade sem controle de ferir, de denegrir, de humilhar e magoar pessoas que nem conhecemos, pessoas que nunca vimos e de quem nada sabemos?"

Sdd.

Bocó.