sábado, 9 de abril de 2011

Minha Lua Crescente

Me espanta que ela tenha vivido tanto... Começa que ela nasceu pequena, tão pequena que foi deixada de lado pela mãe em dedicação quase exclusiva ao resto da ninhada. Me lembro bem desse dia: a mãe estava presa em uma outra cela para que pudéssemos escolher os filhos em relativa calma. Na grade principal, onde estavam os pequenos, todos se colocavam no gradil em busca do afago e da escolha. Ela não. Ficou o tempo todo em pose aristocrática, no fundo do canil, em olhar firme e decidido àqueles que poderiam ser seus donos. Em momento algum ela latiu e fiquei curioso com aquela atitude. Pedi para vê-la e foi incrível o que aconteceu: fui escolhido. Pequenina, com pouco mais de três meses, ela me lambia e tentava escalar pelos meus braços. E então escutei os latidos, baixos mas fortes, prenuncio de cachorro valente. E se escolhido fui, sacramentei tudo e viemos embora. Seu nome seria Luna.
Logo depois surgiu um tumor em uma das patas e não demorou para que ela não pudesse andar. Foram dois meses internada, duas clínicas diferentes, quatro médicos-veterinários e seis operações. No final, o problema marcado de forma definitiva nas cicatrizes, recebemos a pior das notícias: em uma das clínicas ela havia contraido cinomose, doença que é quase uma sentença de morte para um cão. Ela estava com seis meses quando diagnosticamos e não havia muito a ser feito: segundo os médicos, ela já havia passado por todas as fases da veloz doença (febre, secreção nasal e ocular, indisposição, anorexia, depresão, vômito, diarrei, desidratação, leucopenia, dificuldades respiratórias, hiperceratose do focinho e dos coxins plantares, mioclonia e sintomatologia neurológica) e estava no final de tudo, já nessa terrível sintomatologia neurológica
"Não sei como ela chegou até aqui", "Ela não vai sobreviver muito tempo" e o temível "Melhor sacrificar" foram as frases que mais escutamos, mas preferimos ver o quanto ela aguentaria, ela que havia sido sempre tão valente. Pois acreditem, ela não somente sobreviveu como teve mínimas seqüelas: o andar, que já era balançante por conta do tumor, ganhou um ritmo especial, um jeito de correr que era só dela. Quem a visse em disparada pelo jardim poderia crer que se seguiria feia queda, ou que a cadela estava bêbada - mas ela corria mais rápida que todos os outros cachorros. Corria sim.
Depois disso, creio eu, ela teve uma boa vida, dona de um enorme quintal, um grande canil e ração farta. Conseguimos um veterinário que fazia visitas semanais e tudo parecia sob controle. Foi quando ela deu provas do seu valor: um dia a casa foi assaltada, ou houve uma tentativa. O plano dos bandidos era abrir o portão e esperar que todos os cães fugissem para concretizar o crime. E como era de se esperar, e ninguém pode culpá-los, todos os cachorros escaparam em busca dos prazeres sempre negados da rua. Menos ela. Enquanto os demais passeavam e namoravam, curtindo a liberdade, ela ficou sentada no portão em gesto agressivo e protetor. Segundo contou uma testemunha, os homens ficaram por quase 30 minutos esperando que ela abaixasse a guarda, mas não esperavam que ela se mantivesse firme. Quando foram embora, a situação aparentemente controlada, ela fez o inimaginável: se postou embaixo da minha janela e começou a latir de forma curta e sofrida. Intrigado com aquilo, não demorei a acordar e descobri-la deitada ali, o olhar triste como se pedisse ajuda. Estranhei a ausência dos outros bichos e não tardei a descobrir o ocorrido. Chamamos a polícia, fizemos todos os procedimentos e comemoramos a heroína. Não sei o que teria acontecido, nada descoberto e um mundo de suposições, mas certamente ela nós poupou de algo ruim.
Com a fama e a moral elevada, os outros bobalhões que de guarda só tinham o nome, Luna se tornou conhecida na vizinhança e logo arranjou um namorado. Era um bom cão, se chamava Bidu e não viveu muito (maldita cinomose, doença que mais detesto). Enquanto estiveram juntos foram felizes e, antes de morrer, ele deixou um presente para sua companheira: uma surpreendente ninhada.
Por conta de todo o histórico de saúde, Luna foi acompanhada dia e noite por médicos. Fizemos todos os exames e nos revezávamos ao lado dela. No dia do parto, lembro bem, estava no meio de audiências. Larguei tudo e me meti no canil. Fiquei ali, sentado no chão, ela deitada ao meu lado enquanto o veterinário cuidava de tudo. O clima era pesado, cheio de intranqüilidade e  aparente sofrimento. O veterinário estava visivelmente preocupado. 
E como foi trabalhoso aquilo: o parto começou às 13 horas de um dia e só terminou ao meio dia seguinte. Durante todo esse tempo, Luna suportou com serenidade todas as dores, exatamente como era dela. Ela só não suportou quando suas crias começaram a nascer e não se mexiam, imobilidade que somente a morte pode ofertar. Ela foi uma boa mãe, livrava os bichinhos da placenta e os lambia, se esforçava para que eles se mexessem e esboçassem alguma reação. E a cada tentativa ela me olhava, eu que já não segurava o choro, e sentia como se ela me perguntasse "o que estava acontecendo". "Não sei o que está acontecendo", era só o que conseguia pensar (e nunca soube explicar o porque de a sorte ter sido especialmente cruel com ela em determinados momentos). No final, o veterinário só conseguiu salvar dois dos  nove filhotes, a Preta e a Pintada - ouvimos que, provavelmente, havia sido culpa da cinomose, ou algum tipo de seqüela do tumor anterior. Soubemos de tantas coisas e não soubemos de nada, afinal.
Nos últimos anos, depois da separação, eu pouco convivi com ela. Me limitava aos breves afagos por entre a grade, ela que sempre foi exemplo de carinho e dedicação a mim, e sei que sobreviveu a muitas coisas, muitas brigas, e que vivia feliz no enorme quintal, ela e suas filhas, em alegres brincadeiras com meus filhos.
Há um mês, com poucos seis anos de vida, Luna começou a mancar mais intensamente e, um dia, não conseguiu levantar. Novas visitas de diversos veterinários que, novamente, não souberam explicar o que acontecia. Hoje, dia 09 de abril de 2011, ela não acordou. Deitou para dormir e resolveu que assim seria melhor, ficar quieta e serena. Talvez estivesse cansada de tanta atribulação na vida ou, quem sabe, simplesmente não haja nenhuma explicação, as coisas todas que pararam de funcionar e pronto. Fim. 
O enterro foi hoje mesmo, em um dos cantos do quintal, justamente onde ela gostava de pegar sol todas as manhãs.
De cima para baixo: Bombom, Pintada e Luna (única foto que tenho dela)
E para todas as coisas sem respostas, muitas outras se revelaram claras e certas: o quintal não será mais o mesmo e nem será a mesma brincadeira das crianças, o cão-cavalo preferido por sua paciência e sabedoria, o cachorro enorme e confiável que soube sofrer de forma valente e também soube dar lições. Não abandonar, não desistir e não fraquejar. Ser leal e ser firme. Ser valente ao mesmo tempo que dura e carinhosa. E hoje a Lua não se põe, eis que foi feliz.

4 comentários:

Yúdice Andrade disse...

Uma bela história, meu querido. Sei a falta que faz um animal que amamos. Foi duro quando perdemos a nossa Adua, aos 13 anos, após prolongada doença. Mas a vida é assim. O que ficou foi bom e é isso que conta.

Anônimo disse...

ai, ai, ai, fernandoso, só tu pra me fazer lagrimar às 02h30 da manhã...
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bj
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Anônimo disse...

Que lindo texto! Emocionante. Assim como muitos.

Ana Paula disse...

Meu pai tem uma dogue alemã de 9 anos que está doentinha, e o problema iniciou-se semelhante ao que você relata. "Do nada" ela começou a mancar. Mas, ainda está andando...levou ao veterinário e ao que tudo indica é câncer. Ele está bem triste, e disse que quando ela começar a sofrer com as dores, vai levá-la à Clínica, para "colocarem-na pra dormir".
Esses bichinhos deixam muita saudade, mesmo...