quarta-feira, 30 de março de 2011

Fazer filhos dormir III

É estranho ouvir a casa silenciosa assim tão cedo. Não é uma da manhã e tudo dorme, tudo apaga, a casa que repousa por conta da pequena que precisa descansar.
Aqui dormimos sempre tarde, os barulhos de teclado e tevê que facilmente alcançam duas ou três da madrugada em insônia constante.
Fazia tempo que a paz não reinava dessa forma.
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Priscilla me ligou no meio da manhã: havia começado uma obra em sua casa e o cheiro de tinta e gesso despertou a asma de Maria. Agora elas se encontravam em um mundarel de ampolas, soros e exames, nada de grave, mas as chateações de sempre. E como não havia condições de ficar na casa empoeirada, surgiu o pedido: Ela pode ficar contigo esse resto de semana?
Nem precisaria de resposta se Priscilla pudesse ver meu sorriso besta, de orelha a orelha, rasgando a carranca matinal. Tive, inclusive, que me segurar para não dizer que podia ser sempre assim, os dias todos comigo, o pai sempre saudoso dos seus pequenos (mas minha mãe ensinou que mães têm direitos sagrados - e quem sou eu para contradizer uma mãe!).
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A menina está doente, respiração funda e pesada por conta da asma detestada. Mesmo assim ela insiste em pular e cantar, os mil convites para desenhos e jogos e o pai que se transforma no grande brinquedo ao sabor das vontades da filha.
Farinha Lactea tomada, dentes escovados e menina asseada, deitamos então para ler um pouco: ela devora em letras sua nova paixão - um tal de Percy Jackson. Já eu, tentava terminar a última Piaui quando ela se virou e disse: Papai, acho que já quero dormir. Canta uma música para mim?
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Cantar músicas... Minha mãe diz que filho que dorme com cantoria cresce bom cantor. Não sei se é verdade, mas até acho que canto bem e que Maria segue meus passo. E como cantava bem minha avó, agora calada no fundo de sua rede. E como canta bem minha mãe, a voz doce e melodiosa que me dá sempre paz, agora embalando seus netos.
Tal como elas faziam, tenho repertório próprio, tudo já bem conhecido dos meninos (na verdade, são as únicas músicas que sei de cabo a rabo, letra inteira): João e Maria, do Chico; Sampa, do Caetano; Como Nossos Pais, da Elis; Boi Bumbá, do Waldemar Henrique; Tem Gato na Tuba, do João de Barros; e Sua Majestade, o Nenem, a única que não sei o compositor.
Geralmente Maria dorme já em Sampa. Já o Carlos pede sempre Tem Gato na Tuba e Sua Majestade, o Nenem. E sinto que ambos dormem mais tranqüilos quando canto, que ambos acordam felizes e mais sorridentes como se embalados por sonhos bons. Sinto - e na verdade eu sei - pois acontecia o mesmo comigo e com meu irmão.
Hoje, depois da pequena cantoria - tudo bem rápido pois ela estava morta de sono - houve uma última atitude de consciência. Interrompida a música, puxei minha mão da dela e senti o protesto: fui puxado de volta ao abraço que não deveria se desfazer e me deixei ficar, aninhando-a, por quase uma hora.
Nesse tempo pensei em muita coisa: pensei em Paris, nossos dias intermináveis e perfeitos; pensei no Carlos, meu moleque tão distante, sempre visto em breves encontros repletos de novidades; e senti saudades da rede do Gualo, um filho de cada lado e a mãe no centro, nossas músicas preferidas entoadas em suavidade, tudo embalado pelo ranger da rede.
E aviso logo: amanhã haverá mais cantoria, para alegria da filha e plena felicidade do pai.

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