Hoje ocorreu uma segunda marcha aqui em Belém que
pretendia ser igualmente pacífica. No começo existia muita dúvida acerca de
tudo, pois houve uma grande desorganização após a primeira: várias marchas
marcadas para o mesmo dia e horário, vários locais e pautas diferentes.
Isso é normal: um espaço surgiu e depois ficou
vago, e muitas pessoas surgiram para tentar ocupá-lo. Não foi oportunismo, nem
nada parecido, mas as pessoas estavam com um grito preso na garganta e queriam
ir às ruas.
Na quarta-feira, dia 19/06, foi marcada uma
reunião aberta na Praça da república para tentar então definir uma única marcha
na quinta-feira, dia 20/06, além de demandas a serem levadas ao Prefeito, e foi
assim ocorreu: muitos movimentos, alguns partidos, todos querendo falar, falar,
falar, e nada decidir. Foram quase cinco horas de reunião em que mais se viu
uma briga de egos do que outra coisa. Desta vez não era mais o povo, já eram os
partidos, o mesmo de sempre, e foi então que a coisa desandou.
Por lógica tentamos escolher um horário razoável:
reunir a partir das 16 horas e sair às 18 horas. Por prudência tentamos o
percurso Praça da República – São Brás.
Perdemos em tudo.
O que ganhou: sair às 15 horas do CAN com destino
à Prefeitura.
Às 15 horas, quando poucas pessoas podem ir...
Destino à Prefeitura, justo onde poderia ocorrer
depredação e vandalismo...
Perdemos em tudo.
O que restava? Tentar organizar o que havia sido
decidido e torcer que não resultasse em maiores problemas.
Na manhã de quinta houve novo encontro com o
Comando da PM e da Guarda Municipal, e novamente se afirmou natureza pacífica
do movimento. Informamos local de saída e chegada, e provável horário de saída,
mesmo que ainda houvesse forte discussão sobre isso. O Comando da Guarda, já
neste momento, informou que o Prefeito iria falar conosco na Praça, ou uma
comissão seria formada e ele a receberia.
13:30 da quinta-feira, dia 20/06 – chego no CAN e
me deparo com poucas pessoas. Fui logo falar com o Comando da PM presente, que
já tratava de assuntos práticos com o Defenso Público Vladimir Koenig. Muitos
tentavam atrasar o horário, mas as pessoas que estiveram presentes na reunião
aberta do dia anterior não abriam mão do horário escolhido por elas. Depois de
muito barulho, percebendo que havia uma maioria querendo sair mais tarde, assim
aceitaram.
Por volta de 16:00 tentamos sair pela primeira
vez, no que já fomos impedidos por um grupo que fazia questão absoluta de sair
na frente da marcha com sua enorme faixa. Assim como eles haviam vários outros.
Alguns toparam ir para trás da marcha, aceitando que só fossem na frente
aqueles que tinham bandeiras do Brasil e do Pará.
Depois disso, mais briga... Muitos outros queriam
sair na frente, acho que numa tentativa meio estranha de assumir a autoria
daquilo tudo, sendo que o autor de tudo era o povo! Depois de uma pequena ação
de guerrilha, conseguimos passar as bandeiras do Brasil e do Pará para a frente
e finalmente saímos.
Depois descobrimos que um outro pequeno grupo
resolveu sair antes de tudo e de todos, sem avisar nada a ninguém, e nisso os
PMs também foram juntos e acabamos nos distanciado do comando da PM e ficando
sem apoio... Mas nada disso nos abateu diante da festa enorme que rolava!
A marcha foi linda, nem preciso dizer. Foi
organizada, foi ordeira e foi alegre... Rimos muito, todos que ajudavam a
organizar, e assim seguíamos. Até um determinado ponto fui acompanhado por meu
tio Augusto Pombo que fazia fotos. Na Presidente Vargas vi minha esposa e minha
filha, e meus pais na janela. Muitas famílias, muitas pessoas com crianças e
não somente jovens – uma das pessoas que mais puxava gritos e ajudava em tudo
era um senhor acho que cego de um olho, a miséria estampada no rosto, e que não
arredou o pé até o fim.
No meio da marcha, uma surpresa: toca meu celular
e alguém diz “um segundo, o Prefeito vai
falar!” Rapidamente pedi silêncio ao povo ao redor e conversamos de forma
muito breve: ele poderia receber uma comissão dos manifestante, ou poderia
descer e conversar conosco ali na praça. No final de uma breve conversa
acabamos decidindo que ele desceria e falaria, e escutaria, e o que mais
ocorresse, desde que não houvesse violência. Era o mais junto e democrático
diante de um movimento sem líder e sem organizador, feito pelo povo, para o
povo. Tentei procurar o Ricardo Silva, outra pessoa que está ajudando a
organizar tudo, mas ele havia passado mal e teve que abandonar a marcha pelo
caminho.
Já próximo do Ver-o-Peso me adiantei um pouco para
chegar antes à Prefeitura e lá encontrei novamente o Vladimir Koenig já
tratando da vinda do Prefeito e do que aconteceria depois. Nossos planos: para
evitar violências, nós nos sentaríamos todos no chão e o Prefeito, também
sentado no chão, nós escutaria e veria onde poderia ceder.
Já neste momento o povo começou a fazer muita
pressão junto à grade que protegia a Prefeitura, e cada vez fazia mais e mais.
Pedimos, gritamos, que fizessem o acertado e se sentassem, e logo aí vimos que
não daria certo... Enquanto muito gritava SENTA, poucos gritavam NÃO SENTA. E
logo uma minoria ligada a alguns movimentos e partidos começou a hostilização
idiota de hostilizar tudo e todos pelo simples fato de hostilizar.
O Prefeito veio até a grade, cumprimentou a mim e
ao Vladimir, e logo foi cercado por muitos líderes e lideranças, todos com suas
pautas em mão pedindo para serem ouvidos.
O Prefeito deixou bem claro – ou falaria com
todos, ali na praça, ou não falaria com grupos separados, mas sim com a união
dos grupos que haviam organizado a marcha... Justo, mas aí surgia o problema:
aquele movimento havia sido organizado pelo povo sem a participação de nenhum
partido ou movimento. Por mais que eles quisessem tomá-lo, não há dúvidas de
que ali ocorria algo voluntário – Não há líder! Não há organizador! Todos nós
somos lideres e organizadores, porque somos o povo.
Nesta hora começaram a jogar objetos. Primeiro foi
uma bandeira do Brasil, depois uma garrafa de água, depois um ovo... Nesta hora
fui bem sincero: melhor entrar, Prefeito.
Enquanto ele voltava ao prédio da Prefeitura, mais objetos eram jogados e ainda
tentamos pedir calma, gritar SEM VIOLÊNCIA e SEM PARTIDO, mas já era tarde –
bem ao meu lado havia um dos Comandantes da Guarda Municipal, homem alto e
grande, quase 2 metros, acho, que pedia calma e fazia gestos neste sentido, e
de repente ele foi atingido em cheio no pescoço por uma pedra.
Eu lembro bem do barulho seco da pedra batendo
nele.
Lembro de ver sangue.
Lembro de vê-lo sem nenhuma reação e tombar no
chão.
Eu e o João Henrique Santos, que estava ao lado,
corremos até ele e nos colocamos por cima para evitar que fosse atingido por
novos objetos que chegavam. O João foi atingido por uma pedra. Eu tive uma
sorte imensa.
Como esse Guarda Municipal estava sozinho lá fora,
meio distante dos demais, eu e o João tentamos carregá-lo para dentro mas
simplesmente não conseguíamos. Desacordado, o corpo não tinha nenhuma rigidez e
simplesmente braços e pernas tombavam como se ele estivesse em sono profundo.
Ainda sob pedradas, só conseguimos levar o homem
para dentro com a ajuda de mais três ou quatro guardas, não lembro bem.
Lá dentro foram prestados os primeiros socorros e
ainda voltei lá fora para tentar controlar as coisas, mas aquelas pessoas não
queriam controle, muito menos conversar. Fui xingado e, diante de novos
objetos, levado para dentro por um dos guardas que também corria para se
abrigar.
Exigiam que o Prefeito fosse lá fora conversar com
ela, mas jogavam pedras. Pediam paz, mas jogavam pedras. Gritavam SEM PARTIDO,
mas balançavam suas bandeiras quase nas fuças dos Guardas Municipais que
protegiam a entrada do Prédio com escudos.
Foi quase uma hora de grande tensão. Ficamos
sitiados dentro da Prefeitura: Guardas, alguns manifestantes, jornalistas e
servidores municipais. Poucos vândalos jogando muitas pedras e ameaçando
invadir o prédio, num claro intuito de provocar a polícia a agredi-los
primeiro. Tanto a PM quanto a GMB evitaram qualquer atitude, só passando a agir
quando os vândalos não mais se seguraram: além das pedras jogadas começaram a
tentar arrombar as portas da Prefeitura e a quebrar os vidros, e então a PM,
acho, jogou a primeira bomba de gás.
Se nós que estávamos ilhados dentro do prédio
sofremos com o gás, imagino os que estavam lá fora. Neste momento pudemos sair,
e logo corremos por uma outra porta para evitar maiores risco. Somente a Guarda
Municipal ficou lá.
Na saída ainda circulei pela frente do Palácio,
mas já não encontrei nenhum conhecido. Também não encontrei famílias ou os
estudantes que antes cantavam felizes o Hino da nação...
Só encontrei rostos cheios de um riso feliz e
estranhamento sádico, pessoas que observavam aquilo tudo achando de uma beleza
sem igual... Pedras jogadas, portas sendo chutadas e vidros quebrados... Eles
pareciam gostar muito de tudo aquilo.
Mais bombas foram jogadas, mas logo que passava o
efeito os gafanhotos voltavam... Por fim, a PM jogou uma grande quantidade de
bombas e acho que turba acabou por se dispersar. Minha garganta e olhos ainda
queimam. Depois veio a chuva e resolvi voltar para casa. Sem bateria no
celular, achei que estariam preocupados.
Disso tudo, o que posso tirar?
Primeiro: sou de uma ingenuidade tremenda, quase
beirando o besta. Achar que partidos e movimentos respeitariam a vontade do
povo foi muito até para mim. O mais engraçado é ver pequenos partidos ou
movimentos muito segmentados achando que podem tomar conta da vontade do povo.
Um dos gritos de sempre é SEM PARTIDO, no sentido de que não queremos partidos
ali, que aquilo é nosso. O mais engraçado é perceber pequenos partidos e
movimentos segmentados seguindo o mesmo rumo dos grandes – cada vez
representando menos a todos.
Segundo: toda essa manifestação do povo foi tomada
de forma mesquinha por pessoas que não querem conversar, não querem resolver e
nem sabem o que querem. Eles não querem resolver porque precisam estar sempre
brigando, porque somente assim sabem viver. Infelizmente eles são mais
organizados do que nós, então eles ganham.
Terceiro: essas pessoas sofrem de séria
esquizofrenia. Primeiro xingam o Prefeito, mas quando ele aparece se chegam
todos carinhosos e de fala mansa apresentando suas pautas. Primeiro pedem que o
prefeito venha falar com eles, mas depois jogam ovos e pedras. Primeiro querem
ser recebidos como lideranças de algo que seja, mas não aceitam que existam
outras lideranças e nem outra causa, pois só a sua causa é válida.
Sim, todos nós fomos ingénuos. Os poucos de hoje
não apareceram na primeira marcha porque marchamos de nenhum lugar para lugar
nenhum. Assim que puderam, mudaram os rumos justamente para onde queriam.
Relato tudo isso porque realmente não sai da minha
cabeça. O som seco da pedra batendo no pescoço. O som da madeira cedendo ao
chutes. O barulho das bombas de gás. O gás queimando garganta e olhos...
Uma pena que tenha terminado assim uma marcha com
quase 20 mil pessoas pacíficas. Uma marcha absolutamente calma, cheia de jovens
risonhos e felizes por estar ali. Uma marcha onde vimos uma senhora idosa
balançando a bandeira do Brasil e resolvemos cantar o Hino Nacional em sua
homenagem. E não foram poucas as vezes em que os pelos do braço se arrepiaram
ou as lágrimas tentaram brotar, tanta era a emoção de ver aquilo acontecer.
Podíamos esperar, mas não quisemos esperar.
2 comentários:
Ah...Fernandel; fica a lição, não da ingenuidade, meu querido conterrâneo, mas sim da coragem; esta a de ousar trilhar um novo caminho para a querida Belém. O "acordar" da nossa boa gente é possível, muitos viram como ele foi tão lindo e estimulante à participação popular.
Quanto aos vândalos e aos que em nome de partido fazem esse jogo sujeira, lamentamos.
Não estou em Belém, mas acompanhei a movimentação dos preparativos pelas redes sociais e sonhei junto, mesmo tão distante geograficamente; o mal se destruirá ao ver a nossa gente ordeira seguindo na direção contrária, especialmente nas urnas. Ânimo, Fernando; a luta cidadã é para os fortes e ordeiros.
Recebas aí o meu abraço e a minha torcida em direção aos bons tempos que sopram em Belém; se te servir de consolo, saibas que aqui em Curitiba, apesar da manifestação pacífica, um grupo de vândalos manchou a trilha de propósitos da multidão ordeira.
Tenho orgulho de ser Paraense e Brasileira e fico feliz de ver que existem muitas pessoas ingênuas como vc e eu que acreditam no povo e num futuro melhor para todos..Avante!
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