quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Os Círios de meu avô

Belém, 11/10/2013

Acordar no dia do Círio era acordar na correria, todos se apressando para banhar e se arrumar, roupa nova comprada para o domingo, tudo dobradinho no sofá da sala, arranjo antecipado para que não houvesse demora. Tinha sempre o dia nascendo, a rua sem barulhos e a correria dos cinco fazendo de tudo para sair logo e cumprir com os planos de todos os anos.

O Círio era passado no janelão da Assembleia Paraense debruçada na Presidente Vargas, onde ficávamos até o passar da Santa, até bem depois do passar da Santa, pois o povo nunca parava de passar e assim ficávamos todos lá, horas e horas assistindo ao desfile de casinhas, barquinhos e miritis, anjinhos e promesseiros descalços, suados, moídos e felizes.

Acordávamos cedo para pegar lugar, três pequenos e seus pais, sacrifício feito para poupar os avós já tão velhinhos e com intocada vontade de estar ali e de tudo participar. Chegávamos por volta de 06:30 e assim tinha que ser, ou logo tudo era tomado de gente.

Sentávamos diante das grandes janelas, felizes pela vitória de conseguir boas vistas, mas alegria que durava pouco, justo o tempo de perceber que ainda estava quase escuro e a Santa só passaria perto de meio dia. Nós, as crianças, éramos meio que plaquinhas de “reservado”, quietinhos nos seus bancos até que, sonolentos, deitávamos e dormíamos um pouco – o que era até bom, pois criança deitada ocupa mais espaço e, assim, guardávamos mais cantinhos para os avós.

Por volta de 07h:30 o pai saia para buscar seus pais numa proximidade qualquer, largados em taxi, as ruas todas fechadas, somente livres ao fluir do mundo de gente que não tardaria a chegar.

Vovô, eu e Digo, maio de 88,
meu aniversário
Ao surgir os avós, eis a alegria de volta, os netos se atropelando ao carinho da avó, às alegres bandalheirinhas do avô, os pequenos acarinhados qual em recompensa pela valentia de madrugar e montar guarda à festa, o heroísmo, na certeza de ver de perto a Santa, e os barcos e anjinho, os conhecidos, e acenar, e cantar, e rezar e chorar.

Foi durante anos, todos os anos de minha vida, até deixarmos de ser criancinhas e já não dormíamos nos bancos às janelas da Assembleia, agora adolescentes emburrados e chateados por acordar cedo, mas nada que durasse muito, só até chegarem os avós. Então voltávamos à meninice nos colos, nos mimos ao amor familiar. Tudo ia como devia, como devia ser a vida, mas a vida também sabe ser triste.

O avô morreu e muito mudou: acabaram os banhos de piscina de sábado na Conselheiro, os primos todos reunidos esperando os lanches da avó regados com Baré comprado na mercearia da esquina; acabaram os papos na porta do casarão, tudo regado com cantar das cigarras ao fim das tardes, o despedir à porta que nunca findava; acabou o Natal ao redor da árvore, presentes organizados por tios, tudo organizado e entremeado de gritos e abre abre abre. O Círio, como era, também acabou.

Por anos, acho que foi medo de chorar que me impediu de sair nas ruas e acompanhar algo que fosse da festa, até que voltou a coragem e decidi sair, e foi bom ter saído, pois percebi que o avô não tinha morrido, não! Estava mais vivo do que nunca em cada rosto suado, cada casinha de miriti e figuras de cera, e no choro emocionado de quando passa a Santa. E nos fogos.

Ele não morreu porque ele era o Círio, nós somos a festa, o Círio que estava ali e sempre estará.

Hoje vejo meu avô em tudo da festa e, apesar do medo de antes, choro tranquilo lembrando dele, choro de felicidade, não de tristeza, por senti-lo ao meu lado no meio da multidão, e sou tão grato à vida, ao Círio, por isso. Grato ao Círio que revive no passado meu avô Fernando. E obrigado por mais esse milagre, Virgem, por deixar por perto quem já está longe, aparentemente distante.

Feliz Círio.

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