Por mais que, aparentemente, não haja ordem alguma
no amontoado de barcos ancorados no cais de Santarém, é fato que existe uma
organização que passa despercebida aos meros mortais, talvez fruto de anos de
sabedoria e entendimento entre o rio e os homens. Basta abordar qualquer
pessoa, informar seu destino e logo lhe serão dadas todas as opções de
transporte disponíveis.
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O Leão III, barco valente. |
Foi assim que cheguei ao Leão III, barco típico da
região Norte do Brasil, que comumente chamamos de gaiolas. Não há grande fuga à
regra: barcos de madeira, geralmente pintados de branco, em contraste com
outras cores extremamente vivas, com amplos espaços para atar redes e poucos
camarotes. No caso do Leão III, que faz o trajeto entre Santarém e Itaituba,
com escalas em Aveiro e Fordlândia, são dois déques apinhados de coletes
laranjas, além de barras de ferro azuis, com ganchos, nos quais serão
penduradas as redes que logo aflorarão por todos os lados.
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As redes no Leão III no déque superior - neste momento ainda
eram poucas. |
No déque superior se
localizam quatro camarotes para passageiros, compartimentos duplos, com
beliches e ar condicionado, espaços quase sem espaço em apertadura surpreendente que assusta em primeira vista, mas que se
revela acolhedor ao longo da viagem. A completar a estrutura do barco, um
refeitório (com PF custando 10 reais), uma lanchonete (onde uma Coca em lata
custa assombrosos seis reais), um vasto porão e camarotes de tripulação
localizados bem acima da trepidação barulhenta do motor, no déque inferior.
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O camarote 4 do Leão III - não se deixe levar pela imagem.
Ele é bem melhor do que aparenta. |
Aqui há de tudo: há doentes que terminam
tratamento em Santarém e voltam para casa, há pessoas que vão visitar parentes,
além dos muitos que, acostumados com o vai e vem da vida, trabalham numa ponta
ou outra do caminho. Algumas histórias chocam, como a senhora beneficiada do
TFD, Tratamento Fora do Domicílio, que se trata no Regional de Santarém e faz
regularmente a viagem pelo rio. Ela sofre de graves problemas na tireoide e
recebe somente as passagens de barco. Somente isso. Hospedagem e alimentação
ficam por conta dela, que faz verdadeiro malabarismo para seguir adiante com o
necessário cuidado médico. Suas reclamações são muitas: desde a confusão na
marcação de exames, o que já a obrigou a arcar com muitos deles com dinheiro
tirado sabe-se lá de onde; até o médico, que sabendo vir a paciente de longe,
se dá ao direito de faltar ao trabalho por razão qualquer. Quando a conheci,
havia sido exatamente assim: consulta marcada com antecedência, viagem
realizada e médico ausente. E volta a paciente no mesmo pé para sua casa, já
que não tem onde ficar, e nem como pagar um hotel ou comida, uma vinda
totalmente perdida.
O Leão III singra pelo rio Tapajós, um dos mais
belos e mansos que já vi. O barco quase não balança no rio de poucas ondas,
diferente dos trajetos ao Marajó, seja para Soure ou Salvaterra (com uma baia
terrível no meio do caminho), ou para Afuá, pelo outro extremo (com duas baias
terríveis no meio do caminho).
O rio só balança quando chove, explica a senhora
responsável pela lanchonete e pela caixa de som que cospe tecnobrega em último
volume. Ela diz que muitos já se machucaram para valer no balançar quase
assassino de quando chove, movimento que joga as redes com violência contra
paredes e pilastras. Hoje temos calmaria, para nossa felicidade.
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A risonha vendedora da lanchonete, sempre pronta ao bom papo. |
Apesar da beleza do Tapajós, pouco se vê dá margem
tão distante, o rio que, em lugar comum, comparamos sempre com o mar. As
margens ficam longe, distantes da vista, o que também faz ficar longe o
ribeirinho e sua miséria, população praticamente à margem de tudo e todos,
dependente somente de si para sobreviver da forma que der. E se não vemos as
margens, vemos o ocaso no rio, assim como veremos o nascer do sol que promete
ser único, em luz que só deve existir aqui no Tapajós.
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A luz no Tapajós é única. Nenhum outro lugar apresenta cores
iguais às do Tapajós |
Também há experiências que não podem passar
batidas, que deveriam ser experimentadas por todos que aqui habitam para que
pudessem entender bem o que é o Norte:
Estar num barco aparentemente frágil, em rio
enorme de vista sem fim, de margens perdidas no horizonte, embarcação
pontilhada de redes de diferentes panos, cores e tamanhos, diferenças que
remetem aos seus donos, uns índios, outros caboclos, uns portugueses, ricos ou
pobres, saudáveis ou doentes, todos em comunhão de espaço e em perfeita
harmonia, as redes que balançam em unidade como se empurradas por mão única, invisível e divina; tudo envolvido pelo cheiro bom de comida caseira que sobe
do refeitório, onde ficamos ombro com ombro, não importando quem somos, todos juntos
apreciando a boa refeição, mas também a segurar o prato que treme de forma
alucinada por conta da trepidação do motor - e lá estamos bem acima do motor,
de onde vem o cheio de diesel que se mistura com o cheiro da carne assada e do
frango guisado. O refeitório do Leão III não permite apreciar a comida, que bem
merecia ser apreciada pela sua simplicidade, honestidade e tempero único, o
local de tremores mecânicos que só motiva o mastigar veloz para que possamos
nos liberar da fome e fugir para áreas mais aprazíveis da embarcação, tudo
embalado pelos acordes agudos do tecnobrega que abraça a todos, a caixa de som
enorme prostrada no balcão da lanchonete, vomitando amores perdidos em traição,
e que embala os que miram de forma automática o horizonte, olhar vazio, a
música alta que não possibilita pensamento interno ou íntimo, tudo regado por
latas de cervejas e mistos-quentes vendidos a preços absurdos àqueles que não
têm muitas opções.
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Entrada do Camarote 4, meu lar nas 18 horas de viagem entre Santarém e Itaituba. |