Tio Elias era um velho judeu dono de um antiquário na Rua 28
de Setembro, dentro do comércio de Belém. Minha mãe vivia lá, dele era grande
amiga, e com ela íamos nós, seus inseparáveis filhos que faziam dos corredores
da loja um mundo de descobertas e selvageria. Uma casa antiga dessas enormes, com
corredores a perder de vista, cheia das tralhas mais interessantes do mundo
todo.
No sótão, diziam, havia uma jiboia que comia os ratos, mas
também podia comer meninos curiosos que se aventurassem onde não deviam.
Um dia ele presenteou meu irmão com uma bola de boliche,
acho que a primeira bola de boliche inventada, toda de ferro, e hoje, pensando
bem, nem sei se aquilo realmente era uma bola de boliche, quem sabe uma bala de
canhão? Só sei que assim foi dada e usada, o que deixou minha mãe bem
descontente diante das inúmeras lajotas quebradas com força e peso da bola/bala.
Certa vez, vínhamos na Presidente Vargas em nosso fusca
verde e de longe avistamos tio Elias cheio de sacolas e pacotes. Minha mãe,
ainda não letrada nas artes dos filhos, comenta na nossa frente, cheia de
carinho: “Olha, lá vai o Elias parecendo
um judeuzinho errante, todo velhinho”. Claro que, na próxima visita que
fizemos à sua loja, contamos tudo a ele: “Tio,
tio, a mamãe disse que o senhor parece um judeu errante e velho”. Não
esqueço a cara dele, um olhar cheio de sarcasmo para minha mãe, quando
perguntou: “Ah é, Lila? Sou um judeu
errante e velho?”.
Eles nunca brigaram, sempre se gostaram muito e tinham
enorme cumplicidade. Na verdade, ele era a pessoa mais gentil que já vi com
todos. Foi ele quem vendeu ou deu as camas de ferro, de viúvo, nas quais
dormimos nossa vida toda, que até hoje são nossas, preciosidades que tanto
amamos e que, felizmente, suportaram com valentia guerras contra aliens, ataques
piratas e pulos entre precipícios mortais.
Por conta dele comecei minha coleção de moedas, e nem sei
mais onde está minha coleção de moedas, talvez furtada, talvez perdida, e, se
furtada, espero que faça alguém feliz hoje, pois me foi dada com muito amor.
Um dia ele chegou e entregou para minha mãe uma placa de
rua, justamente a placa da Rua 28 de Setembro, ainda aquelas de ferro
esmaltadas, coisa antiga que não se faz mais. Tinham derrubado uma linda casa portuguesa
que ficava na esquina de sua loja, mais um monstrengo em forma de prédio que
surgiria, e então a placa jazia sem interesse no lixo de entulhos da obra. Tio
Elias se meteu por entre pedras e poeira, resgatou a placa e deu para minha mãe
como lembrança sua, de sua loja e dos bons momentos que passávamos lá. A placa
está na minha parede agora e sempre me faz lembrar dele.
Na loja também havia um senhor preto que fazia de tudo, um
homem muito bonito e forte, já envelhecido pelo tempo e pelas desgraças que
deve ter vivido. Não lembro seu nome, acho que minha mãe deve lembrar, e me
chamava a atenção o quanto ele era calado e soturno, sempre muito sério e sem
risos, apesar dos belos dentes brancos. Diziam, entre cochichos, que ele havia
sido escravo, um dos últimos beneficiados pela libertação dos africanos, e que,
libertado de alguma fazendo ao redor de Belém, acabou por se unir com o velho
judeu branco e viraram quase irmãos. Eu duvidava da história até que, um dia, o vi
sem camisa e vi marcas em suas costas que, no meu imaginário, pareciam
bastantes com as marcas que deve deixar um chicote.
Na grande sala ficava uma máquina de café, acho que a
primeira que vi, além de um infindável de cadeiras de embalo onde se sentavam
senhoras e senhores que compravam ou negociavam antiguidades e artes. Ali foram
fechados grandes e pequenos negócios, alguns deles ainda hoje na casa de minha
mãe.
Foi da loja de tio Elias que veio o baú que hoje fica na
sala de jantar, um baú grande e escuro que muito parece com um
caixão, e que muito serviu para assustar nossos amigos, todos crianças, quando
dizíamos que aquilo era, de fato, um caixão, e que ali estavam os restos de um
nosso avô qualquer. Apesar de duvidarem, nenhum deles jamais ousou abrir e verificar se
falávamos a verdade.
Desde quando lembro do tio Elias ele já era muito idoso,
acho que para combinar com o velho escravo, com a casa centenária e todas as
demais antiguidades que moravam ali. Quando ele morreu, nem lembro quando foi
que ele morreu, não sei o que senti além de um vazio, de não termos mais um
local para passear, minha mãe e seus meninos, um local para passar a tarde
ouvindo a chuva cair, bebendo um café bom , rindo das muitas piadas e espertezas
e ouvindo o arrastar da jiboia no forro. Perdemos tudo, mesmo que tudo tenha
ficado na placa da sala, nos móveis que, de forma ou outra, têm um pouco dele,
e nos livros e objetos e joias, e qualquer coisa que passou pela loja de antiguidades.
A casa ainda está lá, no mesmo lugar, hoje dividida em mil
lojas de celular – plodutos chineses – compra-se ouro e cautelas da Caixa, mas não sei
do senhor preto de quem não lembro o nome, que nem mesmo sei se era escravo,
assim como perdi de vista todos que se embalavam sem fim nas cadeiras da sala da
loja do tio Elias. Vez ou outra encontro algum desses tios e tias nas ruas e
nos abraçamos com ternura, acho que felizes por termos dividido algo tão bom. Agora vou ver se acho minha coleção de moedas.